• Paulo Moura
  • 20/03/2015
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DILMA OU O BRASIL, QUEM QUEBRA PRIMEIRO?

O cientista político Francisco Ferraz, meu ex-professor de mestrado, responsável pelos conhecimentos teóricos mais importantes que adquiri sobre política, em sua análise sobre a hegemonia do Estado sobre a sociedade e o mercado na formação histórica do Brasil, afirma que as nações, assim como os indivíduos, possuem uma espécie de “personalidade”. Nos indivíduos, a personalidade, o caráter e a índole, resultam da soma da herança genética e das influências recebidas do meio social durante a vida. Nos países, essa “personalidade”, ou matriz estrutural, com ele a define, resulta dos ingredientes fundacionais da nação, agregadas às experiências decorrentes do processo histórico em seu ciclo evolutivo.

O conceito de Patrimonialismo, que alguns dos mais importantes pensadores políticos brasileiros tomaram emprestado de Max Weber, é atualizado pelo enfoque de Ferraz como sendo o que ele define por “paradigma do Estado hegemônico”. Em síntese, essa perspectiva da análise da formação política do Brasil trata de precedência e da proeminência do Estado sobre a sociedade e o mercado.

Em sua análise, Ferraz trata de um intrigante paradoxo entre a formação histórica dos EUA e do Brasil. Duas nações continentais, descobertas na mesma época, formadas por colonização multiétnica, com suas independências declaradas em período próximo e, no entanto, com processos fundacionais, trajetórias e resultados praticamente opostos.
Nos EUA, a sociedade e o mercado deram origem ao Estado. Indivíduos empreendedores construíram propriedades produtivas, comunidades e instituições antes de se formar a União. A independência dos EUA nasceu de uma guerra colonial contra o Império Britânico. A federação nasceu como opção dos estados que deliberaram em plebiscito de suas populações a decisão de converterem-se em Estados Unidos. O fim da escravidão e o salto da sociedade agrária para a sociedade industrial decorreu de uma guerra civil. Os indivíduos organizados em empresas e instituições civis constituíram a força motriz da nação. A sociedade e o mercado são mais fortes que o Estado. A riqueza é percebida com algo que se cria pelo trabalho e pelo mérito. Os saltos do desenvolvimento social e econômico decorrem da força e do protagonismo dos indivíduos, da sociedade e do mercado.

No Brasil os portugueses, criadores de um dos estados mercantilistas mais poderosos do século XVI, dizimaram os nativos, fundaram o Estado e esquadrinharam nosso território em capitanias hereditárias, que fracassaram porque não havia sociedade ou mercado por debaixo dessas estruturas. Indivíduos aboletaram-se nos cargos públicos, usando-os com se propriedade privada fossem, para usarem suas posições políticas como alavancas para o enriquecimento pessoal. A independência foi protagonizada pelo filho do rei colonizador, a pedido, antes que os colonizados o fizessem. O fim da escravidão foi concessão de uma princesa. O estamento dos controladores do Estado é protagonista do processo social e político. A passagem do Império à República resultou do primeiro de muitos golpes de Estado. O Estado é mais forte que a sociedade e o mercado. A riqueza é percebida como algo que se tira da natureza, do Estado ou dos outros. Os saltos de modernização social e econômica são protagonizados pelo Estado (Getúlio, JK, Regime de 1964).

Segundo Ferraz, características fundacionais e experiências históricas como essas que conformam as matrizes estruturais dos EUA e do Brasil, não mudam facilmente. Assim com os indivíduos só mudam radicalmente sua conduta e modo de perceber a vida após sofrerem traumas profundos, as nações também precisam viver seus traumas para mudarem seus paradigmas estruturantes.

Assim, os EUA somente adentraram a sociedade industrial após a guerra da sesseção. A Alemanha se industrializou e modernizou após perder duas guerras e viver a crise da hiperinflação no entre guerras. O Japão após levar duas bombas atômicas sobre sua população civil. A Coréia do Sul após sua guerra contra os comunistas. E, mesmo a Rússia e a China, se modernizaram e entraram na era industrial sob os auspícios do Estado Comunista, após passarem por suas revoluções.

Observe-se que a primeira tentativa de ruptura do paradigma do Estado hegemônico no Brasil foi protagonizada por Collor nos anos 1990, após os ventos liberais que sopraram do norte a partir das experiências de Thatcher e Reagan nos anos 1980. Alimentado pela influência das ideias de José Guilherme Merchior, um dos mais brilhantes liberais brasileiros, o intrépido coronel alagoano imaginou que derrotaria 500 anos de patrimonialismo com um único golpe de jiu jitso (Ippon) e apoiado por um partido com apenas 16 deputados federais, a partir de sua iniciativa individual como presidente eleito.

Collor começou a abrir nossa economia forçando empresários que o haviam financiado a competir com o mercado global num território que antes era reserva de mercado. Em seguida, fechou estatais na canetada e mandou funcionários públicos para casa sem gratificação. Negava-se a conceder 147% de reajuste aos aposentados. Reatou relações com o mercado financeiro internacional e voltou a pagar nossas dívidas. Suspendeu o programa nuclear militar brasileiro. Fechou as portas do governo para os partidos tradicionais compondo ministério sem nenhum deles. Pretendia comprar a falida rede Manchete para criar uma rede de TV para competir com a Rede Globo. Collor não era um liberal, pois se o fosse não teria confiscado a poupança dos brasileiros. Seguiu as orientações programáticas de Merchior, mas não tinha formação intelectual e nem um estrategista com quem se orientar. Foi derrubado num Ippon, não por causa de uma Fiat Elba, mas porque contrariou muitos e poderosos interesses ao mesmo tempo.

FHC, contido por Mário Covas, por muito pouco escapou de ser ministro de Collor. Conhecedor dos textos sobre o patrimonialismo no Brasil e observador da aventura collorida, o sociólogo tucano tentou retomar a experiência de modernização econômica do Brasil pelo caminho da menor resistência. Ao perceber a oposição do parlamento ao seu projeto de Reforma da Previdência, retirou-o da pauta do Congresso, substituindo-o pela reforma do capítulo da Ordem Econômica da Constituição. Surfando a onda boa dos ganhos econômicos do Plano Real, e sustentado pela opinião pública, aprovou, entre fevereiro e junho de 1995, todas as reformas constitucionais que quis, com maioria de 3/5 nas duas casas legislativas.

Como se pode ver, após o impeachment de Collor, não adveio o caos, como protagonizam os defensores enrustidos da perpetuação do petismo no poder ante a defesa do impeachment de Dilma. Ao contrário, criou-se, assim, o mais consistente período de prosperidade econômica e democracia que o país já experimentou.

Mas, FHC não é um liberal e nem o PSDB um partido de direita como querem fazer crer os petistas. Após reformar a Ordem Econômica e dar novo impulso à modernização da economia, era chegada a hora de reformar o Estado e a Ordem Política e deslocar o estamento que controla o Estado de suas posições de poder, abrindo as portas para o protagonismo da sociedade e do mercado. Reformar a Previdência, privatizar a Petrobrás e os bancos públicos, completar a privatização do setor elétrico, introduzir a meritocracia no setor público, reduzir o tamanho do Estado e aumentar sua eficiência, reduzir a carga tributária, etc. Essa seria a agenda liberal.

No entanto, FHC decidiu que havia uma mudança constitucional mais prioritária do que a agenda das reformas estruturais. Alegando que precisaria de mais um mandato para cumprir a missão, o tucano gastou todo seu capital político para, somente em dezembro de 1997, aprovar a emenda da reeleição no Congresso, à custa de enorme desgaste político e precisando elevar a carga tributária e a taxa de juros para financiar o Estado balofo. Reeleito, em janeiro de 1999 liberou a flutuação cambial provocando uma desvalorização de 40% do real frente ao dólar. Com isso, perdeu apoio popular, perdeu a força para fazer as reformas e pavimentou a chegada do lulopetismo ao poder.
A destruição dos fundamentos do Plano Real começou já no segundo mandato de Lula, com o ingresso de Mantega no Ministério da Fazenda, e completou-se com a remoção de Henrique Meireles do BC e sua substituição pelo submisso Tombini, sob comando da “economista” Dilma Roussef.

A presidente Dilma Rousseff teve sua personalidade forjada sob condições excepcionais. Na juventude, assaltou bancos, sequestrou, foi presa e torturada e, até onde se saiba, resistiu à tortura sem entregar seus camaradas. Ninguém passa impune por experiências como essas. Dilma está arrasada, com o semblante crispado, olheiras profundas e novas e recentes rugas, evidentes mesmo sob toneladas de maquiagem. Mesmo assim, não dá o braço a torcer, não admite erros, e semana passada fez o impensável para qualquer petista: peitou Lula aos gritos negando-se a submeter-se ao seu criador. Nesse traço de sua personalidade reside o descrédito de muitos analistas sobre a sinceridade de Dilma nas suas convicções sobre a necessidade do ajuste fiscal de Levy.

Pois bem, até o advento dos governos do PT, e em especial desse segundo mandato de Dilma Roussef, nunca na história da nação brasileira viveu-se a iminência de uma crise tão profunda como essa que se anuncia no início do décimo terceiro ano de petismo no poder, o quinto do reinado de Dilma.

Seria esta a crise traumática de que nos fala Ferraz em sua análise, e que nunca antes se apresentou na história do gigante eternamente deitado em berço esplêndido?

Quem quebrará primeiro, Dilma ou o Brasil?