(Publicado originalmente em O Globo)
• Sem a cumplicidade brasileira, o governo venezuelano não teria meios para persistir no rumo da implantação de uma ditadura
Fidel Castro costumava jogar basquete. Logo mais, pela primeira vez, a NBA fará uma visita a Cuba, promovendo um seminário sobre o desenvolvimento profissional do esporte na Ilha. Amanhã, no Panamá, abre-se a VII Cúpula das Américas, que assinala o retorno de Cuba ao Sistema Interamericano. Contudo, o drama histórico, possibilitado pelo reatamento entre Washington e Havana, será desfigurado pela ópera bufa da crise venezuelana. No lugar de um debate apontado para o futuro, a América Latina experimentará, novamente, uma reencenação da farsa anti-imperialista. Só será assim porque o Brasil aceitou reduzir-se ao papel de sentinela diplomática do regime moribundo de Nicolás Maduro.
Havia espaço para falar sobre uma Cuba pós-castrista, capaz de reconhecer o princípio da pluralidade política. Premido pela crise na Venezuela, Raúl Castro convenceu-se do imperativo de acelerar as reformas econômicas cubanas, eliminando gradualmente o sistema de preços fixados centralmente, as cadernetas de racionamento e o câmbio duplo. Na Ilha, aos poucos, florescem os pequenos negócios familiares e o trabalho por conta própria, enquanto surge um mercado imobiliário. O reatamento com os EUA obedece à finalidade estratégica de estimular um fluxo sustentado de investimentos estrangeiros. As democracias latino-americanas tinham a chance de dizer a Castro que o embargo americano já não pode ser usado como pretexto para calar a divergência política.
Cuba conhece uma tímida, oscilante, abertura política. Levantaram-se as restrições a viagens ao exterior, a internet começa a decolar e os dissidentes, ainda reprimidos, operam mais ou menos publicamente nas redes sociais. A publicação digital “14Ymedio”, criada pela blogueira Yoani Sánchez mas ainda bloqueada pelos servidores da Ilha, oferece aulas diárias de jornalismo para os cinzentos veículos oficiais. Rosa Maria Payá, filha do falecido líder oposicionista Oswaldo Payá, viajou ao Panamá e participa de um fórum pela democracia paralelo à Cúpula das Américas. Era a hora de pressionar Havana a saltar um novo degrau, admitindo que as liberdades econômicas devem ter sua contrapartida nas liberdades políticas. Mas, sob o signo do lulopetismo, o Brasil figurará como cúmplice da tirania sem futuro do sucessor de Hugo Chávez.
Acossado pelo desastre econômico, o regime venezuelano apela à truculência aberta, encarcerando oposicionistas eleitos e instaurando um estado de exceção no qual Maduro governa por decreto. O objetivo do que resta do poder chavista é evitar uma provável catástrofe eleitoral no pleito legislativo previsto para o segundo semestre. Semanas atrás, uma delegação da União das Nações Sul-Americanas (Unasul) visitou Caracas pedindo garantias de que as eleições serão realizadas. Vergonhosamente, porém, a Unasul não solicitou a libertação dos presos políticos, entre os quais se encontram o líder opositor Leopoldo López e o prefeito da capital, Antonio Ledezma. A reação de Barack Obama foi a imposição de sanções pessoais, meramente simbólicas, contra algumas autoridades venezuelanas, o que deflagrou a ópera bufa.
No Panamá, Maduro protestará contra a “ingerência imperialista”, secundado por governantes que fazem do antiamericanismo uma ferramenta para silenciar sobre a violação das liberdades públicas. O jogral “anti-imperialista” terá a participação ativa de Cuba: na ordem de prioridades de Castro, a defesa do princípio ditatorial tem precedência sobre os interesses da abertura econômica. Mas ele só se sustenta porque conta com as vozes das duas grandes democracias do Mercosul, que são o Brasil e a Argentina. A relevância de Dilma Rousseff é, obviamente, muito maior que a de Cristina Kirchner. Sem a cumplicidade brasileira, o governo venezuelano não teria meios para persistir no rumo da implantação de uma ditadura. Por uma triste ironia, a ex-presa política que ocupa a cadeira presidencial no Palácio do Planalto funciona, de fato, como carcereira dos opositores venezuelanos.
A posição brasileira torna-se menos sustentável na razão direta do agravamento da crise do chavismo. O antigo primeiro-ministro espanhol Felipe González anunciou que se engajará pessoalmente na defesa dos presos políticos venezuelanos. Os ex-presidentes Fernando Henrique, do Brasil, e Ricardo Lagos, do Chile, aceitaram o convite de González para constituir um grupo empenhado na libertação de López e Ledezma. Na mesma linha, Aécio Neves invocou o Protocolo de Ushuaia, do Mercosul, para cobrar de Dilma uma atitude compatível com os compromissos internacionais do Brasil.
A leniência com a escalada autoritária já não conta com o silêncio unânime dos governos da América Latina. “Há mais de 30 anos, o Uruguai viveu as mesmas condições que parte dos venezuelanos está vivendo hoje”, constatou o uruguaio Rodolfo Nin Novoa, ministro das Relações Exteriores de um governo de centro-esquerda que não admite medir a liberdade com a régua da ideologia. Os presidentes do Uruguai, do Chile e da Costa Rica foram convidados por Obama para uma reunião, durante a Cúpula das Américas, que certamente discutirá o impasse na Venezuela. Ao mesmo tempo, Washington articula um projeto de cooperação energética com países caribenhos envolvidos pela política chavista de fornecimento subsidiado de petróleo.
O conceito de América Latina tem uma longa história, mas sempre expressou o desejo de separar os EUA do restante do continente. No cenário geopolítico atual, a cunha não serve para acelerar a modernização econômica ou afirmar a soberania política das nações latino-americanas. Ao contrário, funciona unicamente como muralha protetora de regimes autoritários. Dilma, a carcereira, consumirá os próximos dois dias na defesa de um tirano sem futuro. Falará como representante de um partido e de uma ideologia, não como presidente de todos os brasileiros.
* Sociólogo