• Manoel Luiz Prates Guimarães
  • 16/07/2016
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DESENCARCERAMENTO: IDEALIDADE ABSTRATA E REALIDADE CONCRETA

 

O STF está preocupadíssimo com o crescimento do encarceramento feminino. E com o encarceramento em geral, diga-se de passagem. Aliás, muitos Ministros, magistrados em geral, intelectuais, políticos e professores andam muito preocupados com muitos assuntos. A preocupação da sociedade também é grande com o aumento do consumo de entorpecente no Brasil. E com o crescimento da violência, dos abusos sexuais, da criminalidade, o preconceito e a educação. E tantas outras coisas. Todos esses são ou podem ser grandes problemas. Frequentemente, porém, essas preocupações se dão atentando-se unicamente a uma imaginação do que idealmente deveria ocorrer, sem nenhuma preocupação com a realidade e as consequências concretas das propostas desse imaginário ideal (não que as metas não sejam importantes, mas a realidade e a inserção daquelas nesta, são ainda mais fundamentais). O combate a quaisquer problemas não pode ser meramente nominalista, como, diante da realidade da violência, uma marcha pela paz, com faixas e cartazes de conscientização.

A violência não é um ente abstrato que pode ser removida da realidade removendo-se-a antes do pensamento das pessoas. A violência não ocorre nem apenas nem principalmente porque seu agente pensa nela, mas porque quer ter lucro ou adquirir bens sem trabalhar, e aceita causar dano a outros para tanto, porque não se consegue controlar a libido, ou o ciúme, ou porque, diante de uma contrariedade surge o desejo de vingança que não é contido, ou por razões semelhantes. No Brasil, uma gama imensa de crimes acontece com a finalidade simplesmente de se manter a organização criminosa, seu poder e influência, seus negócios, enfim. Em nenhum desses casos, a violência é um fim, mas um meio tranquilamente visto como aceitável para alcançar os objetivos do criminoso. E, em nenhum desses casos, o criminoso é minimamente atingido pelos slogans de paz e “violência não”.

Pior ainda acontece – e acontece frequentemente – quando essa preocupação e essa tentativa de combate em abstrato a um problema reduzido a um nome permanece tão alto na idealidade, longe da realidade, que acaba se voltando, no concreto, contra justamente os combatentes efetivos do mal que nominalmente se quer evitar. Isso acontece claramente quando, por exemplo, em tais passeatas pela paz, reclama-se da violência da polícia, e não do criminoso, da repressão ao uso e tráfico de entorpecente, ao invés do próprio uso ou tráfico. Imaginar que policiais possam combater o crime oferecendo flores ou chamando à consciência os infratores, com argumentos racionais ou ideais é inconcebível. Se o voltar-se para a idealidade, cegando-se à realidade explica esses erros grosseiros, não raras vezes parece que a inversão é proposital. Ligações perigosas indicam que nem apenas de ingenuidade e alienação vivem erros assim.

A questão do chamado “encarceramento” é um grande exemplo. E dele tratarei, dentre os demais do primeiro parágrafo, devido ao especial interesse do Ministério Público no tema. Aliás, com frequência, há manipulação de dados na matéria, como em tantas outras áreas. O Brasil não é um campeão de encarceramento, como certos setores da mídia e da intelectualidade querem fazer parecer. Mas o problema lógico é anterior. O encarceramento só é um problema em si mesmo, se for injusto. Se o encarceramento é justo, o problema não é ele, mas o crime que o gerou. Aqui me recordo da cena inicial do filme “Tropa de Elite 2”, em que o professor de história, que representa mais ou menos o Deputado Marcelo Freixo, analisando que a população carcerária estava aumentando mais do que a população em geral, conclui que, no futuro, a população carcerária seria maior do que a população geral do país, causando comoção na plateia de estudantes manipulados. Quanta alienação!

Voltando-se para a realidade, é fácil verificar o que ocorre. O aumento do encarceramento não caiu do céu. Veio como fruto do aumento da criminalidade. Aumento – e vertiginoso – dos números de homicídios, latrocínios, roubos. E não veio por um enrijecimento do Direito Penal. Não! Se as legislações não apresentam um abrandamento significativo de penas, as novas correntes doutrinárias e interpretações judiciais têm feito esse trabalho, estas últimas em alguma medida com a justificativa do aumento do encarceramento e das desumanas condições do sistema carcerário. E os indultos de Natal, ano a ano, como têm vindo? Têm mantido mais ou soltado mais apenados dos presídios? Soltado mais, evidentemente. Muito mais! Ou será que o aumento do encarceramento se dá pelo aumento no aparelho repressor. Mais polícia nas ruas tem levado a um índice maior de crimes solucionados ou remediados pela prisão em flagrante (diminuição da cifra negra), o que tem sido responsável por esse aumento no encarceramento? Será que é isso? Claro que não! As penas têm sido mais brandas, o percentual de crimes solucionados e que geram prisão tem sido menor, os indultos têm sido mais complacentes, e não há razão para se crer que as condenações injustas tenham aumentado. O aumento no encarceramento, se existe, em que pese todos esses aspectos em contrário, tem sido causado por um brutal aumento na criminalidade. O problema, portanto, é este aumento da criminalidade, não do encarceramento em si, que é mera consequência.

Há aqui também muita ideologia ligando esse aumento da criminalidade (e do encarceramento) à injustiça social, ao modelo econômico, à cultura patriarcal, à rigidez no conceito legal de família, à educação tradicional, voltada para os conteúdos formais e não para a formação da consciência social, e por aí vai. Nada mais fora da realidade. Basta ver os fatos. A grande exceção da listagem supra parece ser a questão do modelo econômico, que, salvo por adaptação a novas tecnologias e à praxe do mercado internacional, parece ser rigorosamente o mesmo desde a época da ditadura, passando por todos os governos subsequentes até o atual, claro, com algumas variações – e alguns planos salvíficos, pretensa ou efetivamente – mas dentro de um contexto geral uniforme, com constante aumento da carga tributária. O restante parece estar caminhando exatamente como os ideólogos “desencarceramentistas” (que alguns estão chamando de bandidólatras) sonham. No entanto, a constância do modelo econômico não tem impedido o aumento da criminalidade.

De fato, cada governo que passa tem se vangloriado de incluir um contingente maior da população em benefícios assistenciais e previdenciários contínuos, e isso quase esgota o conceito, não o meu, mas o dos “desencarceramentistas”, de justiça social. E, se não é o bastante para eles, havemos de convir que o país não suporta um percentual maior da população sendo sustentada pelo contingente produtivo. Mas todo esse aumento, ainda que longe do ideal para alguns, da justiça social, não tem levado a uma diminuição na criminalidade. A cultura, por sua vez, tem se tornado, a cada dia, menos patriarcal. A importância da presença da figura feminina em todos os meios tem crescido, o que tem sido ótimo. Talvez isso não baste para os críticos do patriarcalismo, mas não se pode negar que se tem caminhado em direção contrária a ele. Mas tal não tem servido para diminuir a criminalidade. O conceito de família, por sua vez, tem sido amplamente alargado, quando não pela lei, por decisões judiciais. Mesmo a união “multiafetiva” já tem sido admitida como entidade familiar, com todas as consequências jurídicas inevitáveis. E nada parece obstar a que grupos afetivos cada vez maiores, e abrangendo seres de natureza cada vez mais ampla (animais e cadáveres seriam talvez os primeiros passos, mas, por exemplo, fez sucesso nas redes sociais o sujeito que queria se casar com sua mão esquerda; há os bonecos infláveis e, como se sabe, a criatividade humana é grande). Mas, ainda que se queira talvez ampliar muito mais o conceito de família, a ampliação do conceito tem havido. Em nada parece, porém, estar contribuindo para uma contenção na criminalidade.

A educação, a seu turno, nunca ensinou tão pouco português, matemática e ciências, trocando-os por projetos de “educação sexual”, “educação ambiental” ou “educação no trânsito” (desprezando-se que, sem aqueles, estes são mera repetição de ideias, sem a capacidade real de os educandos compreenderem a importância ou não das coisas), ou, ainda, pelo aprendizado da “pedagogia do oprimido”, “consciência latinoamericana” e dos graves problemas do Brasil, como violência institucional, violência policial, o aparato estatal como instrumento de dominação burguesa, a criminalização de condutas como meio de controle social e assim por diante. Mas essa “revolução na educação” não tem contribuído para a diminuição da criminalidade.

É preciso fazer justiça a muitos defensores de um ou mais pontos mencionados nos parágrafos anteriores. Muitos os defendem sem imaginar qualquer reflexo na seara criminal. Defendem-nos por si mesmos. No entanto, os argumentos supra são válidos porque, de fato, os desencarceramentistas, questionados sobre o aumento da criminalidade, apontam esses fatores. Por vezes, defendem obstinadamente o desencarceramento geral sem se preocupar com as questões criminais. Preocupam-se, evidentemente, com os encarcerados, mas não com o restante da população que foi e, com o desencarceramento, voltará a ser vítima dos crimes deles. De outro lado, os que ao menos dizem se preocupar com a criminalidade, apontam as causas acima expostas. É preciso concluir aqui que, se houvesse realmente qualquer relação real entre uma necessária diminuição da criminalidade e fatores como aqueles mencionados, referentes à “justiça social”, família, educação, etc, a criminalidade precisaria estar caindo. Está aumentando. Em sentido contrário, poder-se-ia aventar, quiçá, de uma vinculação no avanço dessas pautas e o aumento da criminalidade, o que não pode ser objeto de análise aqui; jamais, todavia, com sua diminuição.

Demonstre tudo isso a um desencarceramentista e o que ele responderá? Ideólogo que é, a realidade não lhe diz nada, apenas o futuro ideal que imagina. Dirá, talvez, que os avanços nessas áreas não tem sido o bastante, que é preciso mais justiça social, mais dirigismo estatal na economia, menos patriarcalismo, mais abertura no conceito de família, mais revolução na educação. Aí sim se reduzirá a criminalidade. Poder-se-ia voltar a objetar que ao menos algum refreio na criminalidade se deveria ver com tanto avanço naquelas pautas, mas não se pode esperar que um desencarceramentista, como qualquer ideólogo, volte atrás pela demonstração de fatos.

Pior ainda se dá quando o desencarceramentista se aprofunda na ideologia e passa a fazer raciocínios invertidos. Quando, por exemplo, passa a ver o problema do encarceramento e da criminalidade, não no crime, mas na sua conceituação. Então, a injustiça não está em que o sujeito furte, comercialize entorpecente, estupre, roube ou mate, mas em que a sociedade e o Estado a isso cominem a pena de prisão. Para os crimes patrimoniais, há o reforço do ideário marxista, amplamente difundido, pelo qual toda propriedade é usurpação, pelo que furto e roubo só podem ser manifestações de justiça e sua criminalização, instrumento de coerção para a mantença do poder nas mãos da burguesia. Para os referentes a entorpecentes, há o reforço dos falsos conceitos de liberdade, também amplamente difundidos, liberdade pessoal de uso, liberdade contratual, liberdade de pensamento e expressão, todos desvirtuados para abranger condutas que atacam a saúde e segurança públicas.

Mas, independentemente desses reforços pontuais, o argumento de fundo é mais amplo. A existência de crimes definidos em lei seriam em si mesmos opressores e geradores das condutas rebeldes contra esse sistema opressor, e seus perpetradores agora são arbitrariamente taxados de criminosos. A ideia de que, a criminalização do homicídio ou do furto se dá, não porque é preciso proteger a vida humana ou a propriedade, ou a saúde, a integridade física, a liberdade, a intimidade, a liberdade sexual, a paz e incolumidade públicas e assim por diante, mas para oprimir a todos os cidadãos, ou a uma ou mais classes sociais, raças, gêneros ou religiões me parece simplesmente doentia. Mas, conceda-se a dúvida, em exercício supremo de abstração. No momento seguinte, fico aliviado em recordar que cem por cento das confissões de furto que recordo ter ouvido alegaram ser a motivação do crime realmente econômica, não um protesto contra a opressão, bem como serem todos os homicídios motivados por ciúmes, vingança, por disputa criminosa mesmo ou similares, nenhum por raiva de uma sociedade que arbitrariamente teria criminalizado o homicídio.

Também é evidentemente doentio imaginar que essa criminalização gera em algumas pessoas uma quase compulsão a cometer tais crimes, como revolta pela sua arbitrariedade. No entanto, por vezes, é exatamente assim a argumentação. Por vezes, é bom recordar, ela vem adornada de altos ideais, em especial a visão de uma sociedade perfeita, em que qualquer criminalização seria desnecessária e absurda, porque todos se amariam, vivendo em perfeita harmonia e que a violência, a rispidez da ameaça estatal de uma pena privativa de liberdade geraria uma tal quebra nessa harmonia (que ainda não existe, porque essa sociedade não existe, mas, novamente, isso pouco importa ao desencarceramentista, como a qualquer ideólogo, pois a realidade não lhe interessa, apenas seu projeto perfeito de sociedade futura), que por isso mesmo acaba gerando os crimes. É preciso objetar que nem essa sociedade existe, nem é lógico imaginar que a criminalização de condutas ameaçadoras à sociedade seja injusta ou gere qualquer desejo de cometer tais condutas. Mas não é possível convencer o desencarceramentista. E mesmo que digamos que nunca ouvimos uma confissão no sentido de que a motivação do crime fora a revolta contra a criminalização dessa conduta, essa objeção é até fácil de responder. A motivação rebelde existe e é a principal. Apenas, dela não está consciente o pobre infrator. O criminoso pensa que matou por vingança, ou furtou para obter o dinheiro. Mas não! Na verdade, no fundo, era apenas uma revolta contra a sociedade opressora que criminalizou essas condutas. Contra tal tão evidente desvario é simplesmente impossível argumentar. Prossiga o sr. desencarceramentista, então, em seu mundo ideal, mas que opine apenas lá, porque aqui, no mundo concreto, não é possível admitir tais absurdos.

Enfim, toda a repercussão e discussões sobre “o problema do encarceramento” não passa de falácia. É apenas a criação de uma fantasia (de que o problema é esse, e não o crime), criando-se, a seguir, uma atmosfera de urgência e pânico, a exigir solução breve, solução que será certamente geradora de problemas maiores, e que, aliás, a nada solucionou. E essa urgência tem servido para impedir uma análise mais acurada, que levaria à inexorável conclusão de que o problema não é o encarceramento, mas o crime, permitindo-se a proposição das mais estapafúrdias alternativas. Ao invés de se aceitar a idealidade proposta pelos intelectuais ideólogos, é necessário voltar-se à realidade, tanto para se analisar o que ocorre efetivamente, quanto para se estudar a aplicabilidade real dos conceitos adotados e o impacto concreto das soluções propostas. Só assim se pode avaliar qualquer situação. No caso do encarceramento, mister se faz esquecer a baboseira ideológica a respeito e passar a pensar no problema concreto da criminalidade. Diminuição de contingente, sucateamento e falta de qualificação dos agentes de segurança pública, implementação de novidades processuais que servem apenas para gerar impunidade, tendências doutrinárias e jurisprudenciais alienadas, garantistas ou abolicionistas, e tantos outros males. Isso é o que se precisa avaliar e reverter, ainda que não apareça na grande mídia, nos meios intelectuais ou acadêmicos. O bem da sociedade é o que cumpre defender.

É preciso voltar a falar sobre o tema, e seriamente, ante tantas questões reais e relevantes até aqui não abordadas, mas que devem aguardar seu momento próprio, dado que já se alongou aqui por demais, não se devendo abusar da paciência dos leitores.
 

 * Promotor de Justiça