(Publicado em http://sensoincomum.org)
A soltura do goleiro Bruno de Souza causou uma das raras unanimidades no país cada vez mais bipolarizado: direita e esquerda acharam um absurdo que o ex-goleiro do Flamengo, acusado de planejar e encomendar o assassinato de Eliza Samudio, ex-atriz pornô que engravidou do goleiro e queria dar à luz à criança e que o jogador pagasse pensão do filho. Seu corpo nunca foi encontrado, mas provavelmente foi espancada até a morte e posteriormente esquartejada, tendo suas mãos comidas por Rottweillers.
Como o presidente do PT Rui Falcão e o petista Alex Solnik consubstanciam à perfeição, um assassino frio que não demonstra o menor arrependimento ou qualquer sentimento de culpa ou remorso pelo assassinato, como o goleiro Bruno, só volta às ruas graças aos ditames do pensamento de esquerda.
É a esquerda que possui “teses” ou, na verdade, frases de efeito e cacoetes verbais como “cadeia não resolve”, “o importante é ressocializar”, “polícia mata”, “legalize o aborto”, “meu corpo, minhas regras” e outros bordões repetidos acerebralmente pela militância em 140 caracteres. É a esquerda que acredita que leis penais, mormente quanto a temas que envolvam crimes de sangue e correlatos, têm apenas o fito de “criminalizar os pobres” (em sua visão, todos criminosos), como o ex-favelado goleiro Bruno.
É o que se chama de coitadismo penal: a idéia do Direito Penal Abolicionista (pregada por Juarez Cirino dos Santos, advogado mais óbvio do ex-presidente Lula), ou do Direito Penal Mínimo como meio para se atingir o Abolicionismo (o Direito Penal Mínimo como fim, a separação extrema de penas entre crimes brancos e de sangue, é defendido, por exemplo, pela doutora Janaína Paschoal). Toda uma cultura baseada na idéia estúpida de que criminosos, incluindo assaltantes, seqüestradores e assassinos, são coitadinhos. A culpa seria da sociedade, e não dos criminosos.
A simples materialização de suas próprias teses, atacadas pela direita todo santo dia, faz com que a esquerda se indigne. Não com seu próprio discurso, mas com a injustiça absurda de um homicida que mata uma mulher para não pagar as contas do filho (preferia que Eliza Samudio o abortasse), negando-se a cumprir seu papel de pai de família.
Preferindo o prazer fácil, o hedonismo irresponsável e negando a “família tradicional”, o goleiro Bruno seguiu pari passu o que a esquerda prega, mas quando feministas, esquerdistas e progressistas viram o próprio Frankenstein que criaram, tão lindo e defensável em abstrato, tão absolutamente horrendo, fétido, abissal e sulfúrico quando adquire carne e osso nas tessituras da realidade concreta.
Assim que viram seu monstro, esquerdistas abandonaram o discurso do “crime é culpa do social” e de “cadeia deve reeducar” e exigiram o retorno do goleiro Bruno à prisão – não em busca de “reeducação”, mas de simples punição por seu crime, como qualquer pessoa dotada do super-poder de enxergar o óbvio quando esfregado no nariz sabe que é a função primordial de uma cadeia ao lidar com um homicida. Foi-se a defesa do aborto, a crítica à família tradicional, a noção transfigurada de que justiça é soltar criminosos, e não prendê-los: acreditando que “esquerda” e “feminismo” são o contrário do que são, todas passaram a defender o que a direita sempre defendeu, sem palavrinhas chics para universitários se sentirem “intelectuais”.
A esquerda, que tem sua revelação com um livro sobre juros, e hoje se refugia nas ciências sociais e na crítica literária, é hoje pura estética: palavras que geram uma reação imediata (daí seu vocabulário ora hiperbólico, como “fascista”, ora pornograficamente eufemístico, como “interrupção da gravidez”). Esquerdistas adoram o palavreado do coitadismo penal, mas são de todo incapazes de formar conceitos de suas palavras, extrair idéias de seus vocábulos, organizá-los em silogismos para repudiar idéias que soem verdadeiras, como “desigualdade social”, sem precisar concretizá-las à custo de sangue alheio.
Rui Falcão e Alex Solnik sabem o que fazem, e sabem que só usam um discurso para proteger seus cupinchas usando a militância como peões. Já os militantes, acham que têm o poder de fogo de um Rui Falcão ou Alex Solnik, mas são apenas buchas de canhão e peões cuja maior glória na vida é serem substituídos por peças que interessem mais a quem está jogando o xadrez a sério.
__________________________
* Flavio Morgenstern é escritor, analista político, palestrante e tradutor. Seu trabalho tem foco nas relações entre linguagem e poder e em construções de narrativas. É autor do livro "Por trás da máscara: do passe livre aos black blocs" (ed. Record). No Twitter: @flaviomorgen