• Valdemar Munaro
  • 21/12/2024
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Belém


Valdemar Munaro
         O que fariam os 'papais noeis' sem o Natal de Jesus? Esses velhinhos de barba branca que andam velozes entregando presentes estariam, certamente, em asilos ou ociosos se não houvesse a gruta de Belém. Os eventos natalinos, ofuscados pela abundância de provocações consumistas ou multiplicação de luzes em nossas praças e cidades, não deixam de irradiar seu genuíno significado. Os acontecimentos na cidade de Davi contêm verdades cristalinas atuais e imprescindíveis à humanidade.

Uma delas é o contraponto radical à catequese niilista e existencialista do experimento nauseabundo e negativo que compreende a vida humana. Foi M. Heidegger (1889 - 1976) o autor que sutilmente plantou essa ideia posteriormente colhida e espraiada pelo filósofo francês Jean Paul Sartre (1905 - 1980). O homem, no entender de Heidegger, é um 'Dasein', isto é, um ser-aí, atirado ou jogado no mundo à semelhança de uma peça desengrenada. Sua condição temporal é essencialmente assinalada pela angústia, pelo medo e pela morte.

Intelectuais próximos à essa estirpe filosófica niilista embarcaram na mesma carruagem e transformaram a existência humana num antro de queixumes bizarro e infeliz. Existir, segundo eles, é fardo sem pé nem cabeça, é aventura sem eira nem beira, é abismo sem fundo e sem luz.

A mensagem do Evangelho, ao invés, proclama vivamente outra catequese. A narrativa de João diz: "e o Verbo se fez carne e habitou entre nós". Essa notícia não se acha em lugar algum, exceto aqui, e sua verdade, extraordinariamente benfazeja, altera o andador da história contrapondo-se radicalmente ao teorema niilista.

As criações humanas seriam impotentes e inúteis se Deus não as amparasse. O que o Verbo Encarnado revela, é que os homens não são indivíduos abandonados à própria sorte, nem têm vidas que se assemelham a baratas tontas, sem rumo. O Autor da Vida, entre nós, veio para nos dar tudo sem nada receber a fim de que pudéssemos receber tudo sem nada dar.

É a fé confiante e pessoal que salva o homem, pensava o matemático B. Pascal (1623 - 1662), mas a fé não se obtém com teoremas científicos ou argumentos filosóficos. Jansenista, Pascal considerava o ateísmo, o niilismo e o ceticismo, fórmulas aptas, convenientes e adaptadas à covardia e à tibieza dos indivíduos. A fé, certamente, é um dom de Deus que conduz o fiel ao encontro vital e pessoal com Cristo, mas ele pode e deve ser desejado e suplicado pelo coração humano.

Os reis magos, por sua vez, varões sábios e humildes, após verem e adorarem o menino, 'voltaram por outro caminho'. O encontro com Jesus, rompe as mesmices. Belém e a humanidade deixaram de ser as mesmas com a Encarnação. Revelando-se puro Amor, Deus não se comunica na forma energética e cósmica, impessoal, mas na forma e linguagem antropológicas cujo destinatário predileto é o homem.

Uma segunda verdade pode ser contemplada na dignidade dos homens e mulheres reunidos em torno de Jesus. Ali está a família de Nazaré composta de pessoas que amam a Deus, os patriarcas, os profetas na esperança do Messias. Chamam-se Zacarias e Isabel (pais de João Batista), Myriam, (filha de Joaquim e Ana, esposa de José e mãe de Jesus), José, homem justo, pastores, anjos, magos, Simeão, o velho, Ana, a profetisa, etc.

Vê-se em seus rostos humildes, extraordinária alegria. O 'Nunc dimittis' de Simeão, o 'Magnificat' de Maria, o 'Benedictus' de Isabel e a 'orquestra sinfônica' dos anjos do céu indicam uma bem-aventurança e uma felicidade contagiosa. Apesar das advertências de Simeão, (ele disse, 'uma espada transpassará tua alma'), não se encontram aí lamentos pelas incompreensões, pela ausência de hospitalidade, pela precariedade da manjedoura, pela crueldade de Herodes e pela fuga dramática ao Egito.

Antros de violência e desamor povoam a história humana e em todos os lugares. Tampouco a concórdia reinava no império de César Augusto. José, Maria e Jesus, contudo, estreitamente unidos pelo amor e pela fé, se tornaram o porto seguro do recém nascido. O escritor austríaco Jakob Wassermann (1873 - 1934) observou: "As doutrinas revolucionárias de um rapaz ainda muito jovem têm frequentemente suas raízes na discórdia que reina no lar" (O Processo Maurizius).

Wassermann, considerado o Dostoievski do século XX por Stefan Zweig, entendeu perspicazmente que a construção ou a destruição de personalidades se gestam em berços. Eis a razão de hordas de insensatos e malucos, ressentidos e psicopatas, revolucionários e terroristas emergirem como moscas nos últimos séculos. As sombras de lares quebrados e filhos desamparados se espalharam progressivamente revelando as marcas de ressentidos e revoltosos, terroristas e assassinos.

O antídoto das insanidades psicológicas e morais se encontra na restauração da concórdia e do amor intrafamiliar. Biografias de grandes justiceiros e assassinos mostram ódios viscerais que todos eles nutriam pelo próprio pai, um reflexo patológico das agressões e opressões vividas na infância.

O marxismo se tornou doutrina fácil e feiticeira justamente por isso: foi capaz, magistralmente, de explorar as feridas recônditas da alma humana, mais que as do corpo. Marx, de história familiar sombria, talvez por isso, não soube construir senão através de destruições. Sua obra incendiou mentes e corações que já ardiam. Cutucai humilhados e oprimidos e descobrireis revolucionários em profusão! Às fileiras de revoltosos e guerrilheiros que se assemelham a Prometeu, Barrabás e Spartacus juntaram-se muitos outros, entre eles, assassinos, psicopatas e justiceiros tão iguais ou piores: Trotski, Stalin, Castro, Lenin, Mao Tse Tung, Pol Pot, Hitler, Ceausescu, Che Guevara, etc.

Nenhuma outra urgente verdade se mostrou tão necessária. A religião de Jesus se baseia no amor. Nem Lao Tsé, nem Kumg-tseu (Confúcio), nem Sidarta Gautama (Buda), nem Abraão, nem Gandhi estiveram livres de confusões e desamores, pois eram humanos. Também Maomé, o grande profeta, teve miserável infância e triste abandono. Sua revelação mostrou-se incapaz de livrar o Islã de mágoas e ressentimentos. O divino mestre, porém, é o único na história que ensina e pratica o mais puro e autêntico amor desvestido de rusgas ressentidas. Seu amor é humanamente impossível porque ama de modo incondicional, de um amor que não destroi, mas salva e redime inimigos.

As doutrinas e obras humanas, quaisquer que sejam, em Cristo, se iluminam em douto significado. Há as soberbas e há as humildes; aquelas se julgam capazes de chegar a Deus sem precisar Dele; estas se creem incapazes de elevar-se sem a ajuda divina. Por isso a suplicam. A Encarnação de Jesus ilumina não somente a história, também a interioridade humana, tornando-se 'causa de queda e soerguimento para muitos' (Lc 2, 34). Os que pretendem o 'saber absoluto' e, com ele, a construção violenta de paraísos neste mundo, sem o concurso da graça, estabelecem para si mesmos um suicídio antropológico e moral.

Edith Stein (1891 - 1942), mártir em Auschwitz, converteu-se à fé cristã não pelos argumentos dialéticos e científicos, mas porque buscou e experimentou um vínculo pessoal e vivo com Jesus. A experiência a conduziu para fora da fenomenologia de seu mestre, Edmund Husserl (1959 - 1938). A fé em Cristo Jesus vivo e ressuscitado realiza a plenitude do Natal, pois O 'envolto em faixas e reclinado no presépio' é o mesmo crucificado e ressuscitado.

Todos os que se movem soberbamente chocar-se-ão com a verdade de que o homem não é Deus, nem o será. Cristo, porém, "sendo de condição divina, não se prevaleceu de sua igualdade com Deus, mas aniquilou-se a si mesmo, assumindo a condição de escravo e assemelhando-se aos homens. E, sendo exteriormente reconhecido como homem, humilhou-se ainda mais, tornando-se obediente até a morte, e morte de cruz" (Fl 2, 6- 8). Os que se arvoram mais superiores do que são, opõem-se ao espírito e aos eventos de Belém.

Jonathan Weiner, ao discorrer sobre o planeta Terra, escreveu: "Qual a primeira e mais importante dádiva da Terra? É simplesmente sua localização no espaço, onde é aquecida pelas chamas de um astro próximo, sendo estas as condições necessárias para a existência da vida. Qual a segunda dádiva da Terra? É o azul do céu e do mar, que tornam o planeta adequado para nosso tipo de vida - o único lugar hospitaleiro de que temos conhecimento no universo. E qual a terceira dádiva da Terra? É a riqueza de sua crosta, contendo aproximadamente uma centena de elementos naturais que dão origem a milhares de combinações químicas - essa constitui a dádiva da variedade, sem a qual as possibilidades de vida seriam infinitamente limitadas... Se o sol se apagasse, toda a água existente em nosso planeta congelaria; os sete mares se transformariam em blocos de gelo com quilômetros de espessura. A própria atmosfera se tornaria líquida, e se acumularia em mares rasos, charcos e poças, na terra negra e gelada. Diante deste poder, é natural perguntarmo-nos se o sol não exercerá sobre nós influências mais sutis, das quais ainda não estamos cientes" .

Ora, há povos que veem o sol como deus, mas o canto de Zacarias (Lc 1, 78) não o confirma. Ali se lê que Deus se parece com o sol, numa imagem que simboliza o Messias que é a luz do mundo. Se não houvesse luz andaríamos nas trevas e a nossa existência seria insípida e obscura. Belém expressa o que S. Agostinho afirma no seu mais nobre texto: "Et laudare te vult homo, aliqua portio creaturae tuae...Tu excitas ut laudare te delectet, quia fecisti nos ad te" (O homem quer te louvar, uma partícula de tua criação...És tu que o estimulas a se deleitar dos teus louvores, pois nos fizeste para ti) (Conf. 1, 1). Deus não nos fez para o nada, nem para o abismo da extravagância niilista. Fez-nos para Ele e nossa origem será também nosso destino. Isso, e mais, podem ser verdades colhidas da Belém de Jesus. Bom Natal!

Santa Maria, 21/12/2024

*      O autor, Valdemar Munaro, é professor de Filosofia.