• Diego Pessi
  • 29/03/2016
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A PÁSCOA DE PILATOS


Em plena Sexta-feira Santa, deparei-me com uma postagem nas redes sociais que comparava a Paixão de Cristo a um caso de “delação premiada”. Poderia ser apenas mais um entre os incontáveis rompantes juvenis de analfabetismo presunçoso que infestam o ambiente virtual. Mas não havia nada de juvenil nesse caso: o autor da peça era um festejado juiz de direito, desses que a mídia e o “beautiful people” do meio acadêmico adoram incensar. Ou seja: um autêntico representante da “vanguarda”.

De acordo com o mote proposto, nosso Salvador seria uma espécie de chefe de quadrilha, capturado através do maldito expediente da “delação” e imolado sob o clamorexpiatório de uma turba ignara. Pode-se inferir que o teólogo diletante não crê no Messias (muito provavelmente creia no Bessias), pois do contrário teria percebido quão ofensiva aos cristãos soa uma comparação desse gênero (grupos de auto vitimização, militantes profissionais e professores salta-pocinhas não hesitariam em classificar ofensa semelhante como “crime de ódio”).

Não é meu objetivo refutar, nos planos jurídico, filosófico e teológico uma analogia tão simplória e imperfeita (coisa quequalquer criança com um mês de aprendizado de artes liberais poderia fazer). Isso seria conferir à postagem analisada uma dignidade que ela absolutamente não possui. Pretendo apenas utilizar o episódio como matéria-prima para o enfrentamento de questões que já há algum tempo despertam minha atenção. A exemplo dolaboratorista, que vasculha nas fezes a presença de parasitas, chafurdarei no produto final das sinapses neuronais do magistrado em busca de um diagnóstico preciso, vale dizer, de uma resposta àseguinte pergunta: o que leva alguém,encarregado da grave função de julgar, aapresentar tamanha inépcia ao cotejar dados da realidade, ignorando suas nuances e tensões dialéticas?

Dito de outro modo: qual a causa eficiente responsável pela transmutação do senso comum em certos julgadores? Qual a origem da conversão do criminoso em mártir, da vítima em mera estatística e da sociedade em malfeitora, nos cânones de boa parte da jurisprudência brasileira?Em suma: de onde vem tamanha falta de discernimento?

Não tenho dúvida de que amentalidade que trata o Cristo como chefe de quadrilha e eleva um chefe de quadrilha à condição de redentor (alijada, portanto do sensode transcendência e de valores transcendentes) é forjada num bem elaborado processo, que compreende a perda do domínio da linguagem e corrupção ideológica, mediante apropriação do conteúdo de seus símbolos (manipulação semântica).

Em suas monumentais “Reflexões Autobiográficas”, Eric Voegelin observa que não haveria ideias se antes não houvesse símbolos de experiências imediatas. Ou seja, a realidade da experiência é auto-evidente e os homens “valem-se de símbolos para expressar suas experiências”. Logo, os símbolos são a chave para compreender as experiências e, uma vez assimilados, servem de base ao raciocínio e à formulação de ideias (sem necessidade de reviver a experiência imediata), dada a fantástica capacidade de abstração do cérebro humano.

Se você alguma vez teve os dedos esmagados ao fechar a porta do carro, deve entender que não é necessário repetir fisicamentea experiência para dela deduzir as dolorosas consequências. Ocorre que nem todos os símbolos derivam de experiências tão elementares quanto essa. Muitas vezes é necessário “escavar” ideias e símbolos de modo a reviver a experiência real (compactada) que lhes deu origem, sob pena de reduzir a linguagem a uma troca de impressões subjetivas que jamais remetem a qualquer referente.

Nesse processo, Voegelin percebe que “a transformação das experiências e simbolizações originais em doutrinas podia conduzir a uma deformação da existência, caso o contato com a realidade tal como experienciada fosse perdido e o uso dos símbolos de linguagem engendrados pelas experiências e simbolizações originais degenerasse em um jogo mais ou menos vazio”(grifei).

Terrivelmente familiar, não? Afinal, o universo das ciências jurídicas e sociais é pródigo em signos de difícil diferenciação, cujo significado não é apreensível “primo ictu oculi”, mas, antes, depende de profundo esforço para rememoração (anamnese) e compreensão do contexto da experiência real que lhe deu origem. A perda de contato com a realidade e a atribuição de significados puramente subjetivos a conceitos jurídicos (que outrora tiveram um referente) leva aos absurdos jurisprudenciais testemunhados diariamente por aqueles que militam na área criminal.

Esse verdadeiro estelionato é cometido com a melhor das consciências, sob o manto de discursos pedantes, nos quais afloram aos borbotões conceitos esvaziados do conteúdooriginal e preenchidos com geléia ideológica. Não raro, princípios são empregados para justificar aquelas atrocidades que, na origem, visavam a evitar (em regra, quanto mais empolado o fundamento, maior a teratologia da decisão). É assim que a impunidade se converte num direito fundamental.

Os autointitulados guardiões dasgarantias fundamentais são facilmente identificáveis, pois parecem saídos de uma linha de montagem. Não há espaço para dissensões nesse grupo, que alguém muito espirituosamente batizou como “confraria de aplausos mútuos”. Isso se explica porque “tendo perdido o contato com a realidade, o pensador ideológico passa a construir símbolos não mais para expressá-la, mas para expressar sua alienação em relação a ela” (grifei). Em outras palavras, a perda de contato com a realidade é invariavelmente suprida pela inserção do indivíduo em uma “segunda realidade”, marcada pela “recusa de perceber”(expressões de Doderer, apud, Hitler and the Germans – The Collected Works of Eric Voegelin, volume 31, pp.108/9, University of Missouri Press). A complexidade do mundo é substituída por um sistema ideológico que reduz as possibilidades do real aos seus próprios limites e horizontes.

É justamente aqui que a coisa ganha contornos dramáticos. O sistema ideológicoadotado pela vanguarda tupiniquim é uma caricatura daquele concebido pela Escola de Frankfurt - em suas formulações mais tardias,rastaqueras e de fácil assimilação - combinadocom as lições de Antonio Gramsci (troca da retórica das armas pelas armas da retórica).Consiste, basicamente, na utilização da teoria crítica como espada e do politicamente corretocomo escudo. A aplicação da teoria crítica, em apertada síntese, equivale à tentativa de demolição dos pilares da civilização ocidental (moral judaico-cristã, filosofia grega e direito romano). Remete à ideia gnóstica de que atravésdo caos e da desordem algo de bom deverá surgir (sem definir exatamente o quê). O politicamente correto, por seu turno, cumpre a missão deneutralizar qualquer reação daqueles que possam se opor à teoria crítica (e defender os valores que são caros à civilização). Isso é feito mediante expedientes de difamação preventiva e atribuiçãode rótulos odiosos ( técnicas especialmente eficazes no meio universitário) para intimidaçãodos possíveis dissidentes, que optarão por sufocar suas opiniões numa espiral de silêncio, a fim de evitar a execração por seus pares.

Dentro do sistema de manipulação semântica, ou seja, na “novilíngua” dos doutos, uma criança pode ser esquartejada no ventre materno em nome da “dignidade da pessoa humana” ou dos “direitos da mulher”. Um latrocida sanguinário, com folha de antecedentes semelhante a um guia telefônico, pode ser solto em nome da “presunção de inocência”. Usar e vender drogas passam a ser direitos sacrossantos,e uma vítima pode ser obrigada a encarar seu estuprador durante o depoimento para preservação das “garantias fundamentais” do acusado. Por outro lado, o policial que arrisca a vida, recebendo salário de fome, deve ser considerado a própria encarnação do mal, a exemplo de qualquer agente do estado que ouse defender a punição severa dos delinquentes. Essa inversão de mentalidade foi magistralmente captada pelo filósofo Olavo de Carvalho no (cada vez mais atual) artigo Bandidos & Letrados (Jornal do Brasil,26/12/1994):

“(...) Humanizar a imagem do delinqüente, deformar, caricaturar até os limites do grotesco e da animalidade o cidadão de classe média e alta, ou mesmo o homem pobre quando religioso e cumpridor dos seus deveres — que neste caso aparece como conformista desprezível e virtual traidor da classe —, eis o mandamento que uma parcela significativa dos nossos artistas tem seguido fielmente, e a que um exército de sociólogos, psicólogos e cientistas políticos dá discretamente, na retaguarda, um simulacro de respaldo ‘científico’".

À luz da "ética" daí resultante, não existe mal no mundo senão a "moral conservadora". Que é um assalto, um estupro, um homicídio, perto da maldade satânica que se oculta no coração de um pai de família que, educando seus filhos no respeito à lei e à ordem, ajuda a manter o status quo? O banditismo é em suma, nessa cultura, ou o reflexo passivo e inocente de uma sociedade injusta, ou a expressão ativa de uma revolta popular fundamentalmente justa. Pouco importa que o homicídio e o assalto sejam atos intencionais, que a manutenção da ordem injusta não esteja nem de longe nos cálculos do pai de família e só resulte como somatória indesejada de milhões de ações e omissões automatizadas da massa anônima. A conexão universalmente admitida entre intenção e culpa está revogada entre nós por um atavismo marxista erigido em lei: pelo critério "ético" da nossa intelectualidade, um homem é menos culpado pelos seus atos pessoais que pelos da classe a que pertence (...)”.

O problema é que, como dizia John Adams, “fatos são persistentes”. A primeira realidade (à qual nós mortais estamos sujeitos) acaba sempre se impondo de forma brutal ao “mundo-cor-de-rosa-com-Papai-Noel-chapado-de-prozac-na-Disney”, que só existe na cabeça da vanguarda judicial tupiniquim graças à sua pertinaz “recusa em perceber” os fatos do mundo circundante. Na segunda realidade, onde vivem esses seres iluminados, delinquentes da estirpe doo famoso “Champinha” podem ser consideradosheróis do lumpemproletariado em luta contra o sistema opressor. No mundo real, continuamsendo feras assassinas, que enxergam a sociedade como um grande parque de diversões para vazão de seus instintos animalescos.

Jamais me ocuparia do assunto, caso ele se limitasse ao usual e soporífero onanismo acadêmico. Ocorre que, no presente momento, toda essa brincadeira custa ao país 60 mil homicídios por ano (treze por cento dos assassinatos do planeta, segundo publicação recente). Para que não se diga que fico apenas com a frieza dos números, evoco o testemunho de todos os colegas que atuam ou atuaram em Varas Criminais, e, mais especialmente, perante o Tribunal do Júri: há algo mais desolador do queuma família enlutada, de quem tudo já foi tirado, ser condenada a ver seu clamor por justiça sacrificado no altar da bandidolatria?

Nesse leito de Procusto, em que se converteu boa parte da jurisprudência, quem deita é sempre o cidadão pacato e ordeiro, que teima em viver honestamente (afinal, se a teoria não se conforma à realidade, dane-se a realidade!). O sangue alheio não terá sido derramado em vão enquanto servir para ilustrar uma bela tese, vender livros ou proporcionar palestras para “confraria de aplausos mútuos”. A definição de comunista do saudoso Millôr Fernandes cai como uma luva para essa grei de magistrados: “São como alfaiates, que, vendo que a roupa não serve, fazem ajustes no modelo”. Não merecem qualquer respeito ou deferência. São impostores que deveriam ser vomitados pela toga e escorraçados do debate intelectual sério. Um Pilatos foi o bastante. Não somos obrigados a tolerar seus discípulos.

* O autor é promotor de Justiça junto ao Ministério Público Estadual do RS