• Leonardo Giardin de Souza
  • 22/03/2017
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A LEGALIZAÇÃO DEFINITIVA DA IMPUNIDADE


A reportagem da versão eletrônica do jornal O Estado de São Paulo intitulada “Pacote de petista pode afetar Lava-Jato” (http://politica.estadao.com.br/noticias/geral,pacote-de-petista-pode-afetar-lava-jato,70001698213) bem ilustra o fato de que setores da mídia brasileira, por vezes, apresentam a velha e incorrigível mania de simplificar tudo e reduzir o assunto inteiro a apenas um aspecto da questão, em abordagem metonímica. É injusto, inexato e acima de tudo incompleto afirmar que a nocividade do "pacote" de projetos de lei já em tramitação na Câmara dos Deputados a que se refere a notícia, de autoria do deputado federal Wadih Damous, se limita ao mero potencial de afetar a Operação Lava-Jato. Na realidade, a abrangência e o círculo de influência dos projetos apresentados pelo parlamentar na semana passada, e não apenas esses, é infinitamente maior. Nossos notícipes sequer se apercebem disso e já saem por aí anunciando a chegada do Anticristo. Calma... A coisa pode não ser bem - sobretudo não ser apenas - o que parece à primeira vista...

Chamo a atenção para um aspecto em particular: a matéria do Estadão traz referência ao teor do Projeto de Lei 7034/2017 (disponível em http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra…), que pretende acrescentar o artigo 405-A ao Código de Processo Penal, no intuito de fazer incorporar ao ordenamento jurídico a seguinte regra:

"Os processos penais ou procedimentos penais de qualquer natureza que não forem concluídos no prazo de 1 (um) ano, sem justificativa relevante e fundamentada, serão extintos sem julgamento de mérito".

O texto, que joga na lata do lixo todas as regras de prescrição existentes no Código Penal e legislação em geral em nome de uma suposta violação da garantia do acusado à efetividade e à duração razoável do processo, determina que qualquer processo criminal ou procedimento investigatório deverá ter desfecho no prazo de apenas um ano (a justificativa do projeto não explica como se chegou a tal prazo; permito-me especular que tenha sido uma estimativa de segurança para atingir algum objetivo não esclarecido pelo autor do PL). Caso contrário, será extinto, salvo se a novel modalidade de "excesso de prazo" tiver um "justificativa relevante" (seja lá o que for essa luva de maquinista, mais um cavalo de batalha a ser explorado pelos defensores dos acusados na tentativa de evitar o julgamento do mérito).

Ora, qualquer pessoa com um mínimo de vivência no meio jurídico-criminal, seja juiz, membro do MP, advogado, servidor ou estagiário, sabe que a grande maioria dos feitos excede o prazo (prescricional? dublê de prescrição intercorrente? gambiarra pró-impunidade?) idealizado no PL, por uma série de fatores, dentre os quais a absoluta falta de estrutura para enfrentamento da imensa demanda criada por uma criminalidade galopante e desenfreada. Curioso é que a própria justificativa do projeto faz referência à "sobrecarga de processos no Poder Judiciário", sem se dar conta que esse é exatamente um fator (dentre outros) que serve para justificar a costumeira delonga na tramitação nos feitos.

O parlamentar apenas deixa de fazer menção a inúmeros outros mecanismos de procrastinação dos processos, proporcionados por um quase inesgotável sistema recursal e uma cada vez mais ampla gama de possibilidades de arguição de causas de anulação e nulidade, quando não previstas em lei, criadas pela doutrina e pela jurisprudência garantistas, mecanismos usados e abusados à larga por defensores de acusados e que contribuem sobremodo para que "a garantia da duração razoável do processo" seja vilipendiada pela própria defesa do acusado que costuma invocá-la em seu favor quando convém.

É óbvio, portanto, que esse projeto, caso aprovado, será um duro golpe à Operação Lava-Jato, notadamente aos feitos envolvendo autoridades com prerrogativa de foro que tramitam no STF - sobretudo os 83 pedidos de inquérito recentemente apresentados pelo Procurador-Geral da República, cuja duração é estimada por “especialistas”, em média, de dois a quatro anos para cada procedimento, envolvendo investigação, processo e julgamento. Mas a impunidade e consequentemente os malefícios que podem resultar dessa hipotética previsão "legal" (não pretendo entrar no mérito da (in)constitucionalidade dessa aberração) a todos os processos de homicídio, latrocínio, roubo, estupro, extorsão, corrupção, peculato, associação criminosa, tráfico de drogas e muitos outros em todos os foros espalhados pelo Brasil afora seriam de alcance civilizacional e incalculável. Quase um salvo-conduto para a prática de todos os tipos de crime no Brasil, do que se conclui a seguinte obviedade: não apenas parlamentares, megaempresários e políticos corruptos e corruptores (o estamento político-burocrático nacional, na acepção de Raymundo Faoro), mas todas facções e corporações criminosas que atuam em todos os ramos e níveis, principalmente organizações de assaltantes e de narcotraficantes, e, mais remotamente, todos os criminosos profissionais ou não profissionais em geral, serão beneficiados em caso de aprovação do projeto, em detrimento, à toda evidência, dos cidadãos ordeiros, ou seja, da esmagadora maioria da sociedade, enfim, do que se entende por bem comum.

É prudente observar, por “esquecido” na justificativa apresentada pelo parlamentar, que, aprovada a pretensa norma “jurídica”, os únicos processos que terão chances de êxito serão justamente os menos complexos e aqueles cujas defesas não lançarem mão de instrumentos procastinatórios, que, na experiência forense, são exatamente os feitos a que respondem os chamados “ladrões de galinha” que cometem fatos criminosos de singela apuração e não possuem recursos para bancar defesas a peso de ouro para retardar a marcha procedimental. No entanto, é justamente em nome desse tipo de delinquente que os garantistas dizem falar, lançando uma cortina de fumaça sobre o que é muitas vezes uma inconfessável militância em causa própria e em defesa da “clientela” mais abastada e poderosa.

Mas a coisa não para por aí: sempre com base nos mesmos surrados chavões (as justificativas de todos os projetos de lei orbitam, quase como um disco arranhado, em torno da retórica falaz do desafogo do sistema judiciário, da efetividade e da duração razoável do processo, do garantismo, do "encarceramento em massa” no Brasil, principalmente de “negros e pardos", etc.) o mesmo parlamentar, em seu "pacote", pretende, dentre outras providências: tornar irrecorríveis "as sentenças que absolvem sumariamente o acusado por crime punível com pena máxima inferior a 4 (quatro) anos, salvo se demonstrada má-fé do julgador" (PL 7033/2017); tornar nulas as sentenças e os decretos de prisão preventiva que, na fundamentação, se limitarem a reproduzir o teor de depoimentos prestados durante a investigação, inclusive de delações premiadas, homologadas ou não (PL 7032/2017); tornar os crimes de furto, estelionato, abuso de incapazes, apropriação indébita e receptação, dentre outros, em regra de ação penal de iniciativa pública condicionada à representação (PL 7031/2017); excluir a possibilidade da prisão preventiva para garantia da ordem pública e econômica - minimizando as possibilidades legais de encarceramento preventivo e negando ao juiz a plena utilização de seus poderes gerais de cautela, impondo-lhe uma limitação inaceitável e beneficiando uma legião de criminosos que necessitariam ser contidos (PL 7028/2017); permitir que possam ser beneficiados com a substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos pessoas condenadas por roubo simples, extorsão e até mesmo reincidentes, desde que a benesse seja "socialmente recomendável" e a reincidência não decorra da prática de crime anterior com violência à pessoa - o que de plano permite, em tese, que pessoas definitivamente condenadas anteriormente por tráfico de drogas, furto, homicídio culposo, extorsão, roubo sem o emprego de violência (inclusive assaltos à mão armada em que somente se empregou grave ameaça) não necessitem cumprir pena de prisão (PL 7027/2017); estabelecer poder requisitório para advogados privados e defensores públicos no âmbito da investigação e do processo penal, inclusive sob pena de desobediência em caso de descumprimento pelo destinatário da requisição, invocando uma suposta necessidade de "paridade de armas" que, todos sabem, pode ser suprida com intervenção judicial (PL 7025/2017); alterar a Lei de Drogas (Lei 11343/2006) para tornar nulas as sentenças condenatórias fundamentadas exclusivamente no depoimento de policiais - o que implicaria na absolvição da quase totalidade dos narcotraficantes que hoje em dia são condenados, invariavelmente somente com base nos relatos policiais (PL 7024/2017).

Enfim, o “pacote” segue a mesma trilha que vem sendo a tônica da jurisprudência, doutrina e legislação há décadas no Brasil, cujo empreendimento “coincidiu” com a transformação do Brasil, ao longo do mesmíssimo período, em uma das nações mais inseguras e assassinas do planeta e que concedeu à nossa Terra de Santa Cruz o posto de campeão mundial de assassinatos em números absolutos.

Qualquer pessoa minimamente inteirada da realidade consegue entrever a uma longa distância que esse pacote de medidas, caso aprovado, significaria a pá de cal no pouco que resta de efetividade da Justiça Criminal no Brasil. Não apenas políticos, megaempresários e agentes públicos corruptos e corruptores, mas toda sorte de delinquentes e associações, organizações, facções e corporações criminosas festejaria o triunfo definitivo da macabara cultura da bandidolatria contra o cidadão de bem. Ameaça à Operação Lava-Jato? Por favor, sem reducionismos. As consequências tenebrosas da eventual aprovação desse pacote de medidas iria muito, mas muito além do que as manchetes permitem supor.
 

* O autor é Promotor de Justiça no MPE/RS.