Em momentos de crise, a sensação de insegurança se espalha com muita rapidez. E estamos vivendo um momento de crise: não somente de crise econômica, embora esta também se faça evidente, mas principalmente de crise ética, religiosa e, porque não dizer, civilizacional.
Em situações assim, não é incomum que aqueles que estão no poder procurem razões – fora de si mesmos – as quais imputar a responsabilidade pelo fato de que as coisas não estão indo bem. Uma estratégia muito comum de governantes que desacreditam na alternância de poder como princípio democrático é a de afirmar que as atuais estruturas políticas e sociais não são suficientes para que ele possa exercer o poder necessário para levar o povo para fora da crise. O governante grita por mais poder; presume-se legítimo não apenas para conduzir o povo para a prosperidade, mas ao paraíso na terra, o que só não aconteceria, alegam, porque sua capacidade de fazer o necessário para isto está atada por princípios e estruturas que o restringem, e o impedem de redimir o povo da crise.
Este é um fenômeno que parece estar se desenhando no Brasil: vê-se o partido do governo propondo uma reforma política logo após quase sofrer uma grande derrota eleitoral, e defendendo a extinção de estruturas políticas multicentenárias como o Senado da República, ou tentando bloquear o que vê como canais de possíveis derrotas para si em votações no congresso e em futuras eleições, que são a imprensa livre e a possibilidade de financiamento privado (aberto e contabilizado) de campanhas.
Ora, os princípios são criados e mantidos exatamente para nos guiar nas crises. Na prosperidade, ninguém discute princípios. No entanto, a ideia de que são os princípios, as estruturas democráticas, a liberdade de expressão ou a participação de agentes privados em campanhas eleitorais os verdadeiros responsáveis pela crise escamoteia o fato principal: isto não é verdade. As crises nascem e algum outro lugar, não das estruturas democráticas e sociais, e desconstruir estruturas democráticas e sociais nunca foi caminho para solução de crise, senão para, como parece óbvio, criar um governo autoritário e acabar com a democracia.
É por isso que a própria Igreja construiu um sistema sólido de Doutrina Social, firmemente ancorado numa ética cristã que, se de um lado possui uma sustentação de razoabilidade firme como rocha, por outro lado respeita a interpelação de Deus no dado revelado. Por essa mesma doutrina social, o Estado – e seus eventuais ocupantes – não são a panaceia geral, mas servidores da sociedade, e não têm a legitimidade para pleitear mais poder, desconsiderando o princípio da subsidiariedade, mesmo a pretexto de soluções “sociais” para crises. Há problemas que não cabe mesmo ao Estado resolver, mas apenas reforçar as demais estruturas sociais para que estejam capacitadas a fazê-lo.
Não faz parte da doutrina social da Igreja acreditar que os cristãos somente ajudam os mais pobres de verdade quando votam num governo que alegadamente faça isso por eles. De fato, sabe-se que Jesus nunca ensinou que os cristãos deveriam simplesmente delegar ao governo o dever de ajudar os mais pobres. A doutrina social da Igreja sempre ensinou que se deve fazer uma “opção preferencial pelos pobres”, mas jamais que o Estado, de algum modo, devesse receber mais poderes, mais delegações, devesse desconstruir estruturas familiares, restringir meios de comunicação social, impedir a plena participação do setor privado no processo eleitoral, desfazer estruturas republicanas, de modo a exercer uma suposta benignidade para com os mais pobres em nome e por delegação dos cristãos.
A Doutrina Social da Igreja, na verdade, sempre instruiu que lutar pelos mais pobres era um dever de todos, não um monopólio de um governo “social”. Mesmo porque, a julgar pelo que se vê na rua todos os dias, a estratégia do governo não está adiantando. E não por culpa da “falta de uma reforma política”. Mas por políticas econômicas desastradas, falência ética, excesso de drogas e incapacidade de lidar com elas, falta de perspectiva, falta de segurança e massiva partidarização das escolas que escolhem não ensinar, mas doutrinar, apenas para citar alguns problemas.
Há muitos debates a serem feitos, com toda a franqueza e honestidade, sobre quais os meios mais adequados para resgatar os mais pobres; dentre eles, é claro, a compreensão e prática mais firme da doutrina social da Igreja, por todos e cada um de nós, cristãos.
Mas imaginar que a única maneira de ser cristão é dar mais poder a “partidos populares”, ou que a Doutrina Social da Igreja de algum modo nos obriga a dar irrestrito apoio a programas sociais estatais assistenciais e massivos, ou a quem propõe alinhar o país a blocos internacionais socialistas em nome do combate ao “capitalismo internacional”, e que a Igreja deveria, portanto, estar ao lado da desconstrução das estruturas democráticas, familiares e sociais como única maneira de tornar mais forte um governo “social” que promete tornar “efetiva' sua opção preferencial pelo pobre é uma tentação, mas, como toda tentação, deve ser fortemente resistida.
Os mais pobres precisam de educação, saúde e emprego, de estabilidade econômica e de solidariedade entre si e com os demais. Dar mais poder ao Estado, ao contrário, é torná-lo mais paternalista, mais centralizador da economia, mais gerador de dependências. Os mais pobres precisam de famílias bem estruturadas, estáveis e fecundas, para serem apoios recíprocos e fortalecer a sociedade. Não se obtém este objetivo apoiando o aumento de poder político de um grupo cuja ideologia proclamada é a “desconstrução da heteronormatividade”, a “destruição do modelo (segundo eles) patriarcal e dominador de família em que o homem provê e a mulher reproduz”, por um modelo em que ambos trabalhem duramente e o dia todo, suas ligações afetivas sejam circunstanciais e facilmente substituíveis e o Estado se ocupe plenamente da atenção e dos cuidados com as crianças que sobreviverem às políticas públicas de contracepção artificial, esterilização em massa e aborto irrestrito. Os mais pobres precisam de apoio na velhice e na doença, e não de um governo que se veja cada vez mais capaz de promover a legalização e adoção da eutanásia e do suicídio assistido, e cuja política de saúde mais propagandeada seja a importação de médicos estrangeiros de habilitação duvidosa mediante o pagamento da maior parte do respectivo salário aos governantes daquele país.
A crise é forte, e não há horizonte de melhoras. Está havendo uma radicalização inegável no discurso do governo. O apelo governamental a uma suposta “política pelos pobres” não pode silenciar o profetismo cristão, nem em nome de uma leitura simplista da doutrina social católica. Que em nenhum lugar estabelece que é dever cristão ampliar o domínio do Estado em mãos da esquerda socializante. Que, aliás, onde se instalou, passou a combater a Igreja e a própria liberdade religiosa.