(Originalmente publicado em O Estado de São Paulo, 27/02/2015)
Se o PT pusesse fogo em Brasi´lia e algue´m protestasse, a resposta viria ra´pida: onde voce^ estava quando Nero incendiou Roma? Por que na~o protestou? Hipocrisia.
Com toda a pacie^ncia do mundo, voce^ escreve que ainda na~o era nascido, e pode ate´ defender uma ou outra tese sobre a importa^ncia histo´rica de Roma, manifestar simpatia pelos crista~os tornados bodes expiato´rios. Mas e´ inu´til.
Voce^ esta´ fazendo, exatamente, o que o governo espera. Ele joga migalhas de nonsense no ar para que todos se distraiam tentando cata´-las e integra´-las num campo inteligi´vel.
Vi muitas pessoas rindo da frase de Dilma que definiu a causa do esca^ndalo da Petrobra´s: a omissa~o do PSDB nos anos 1990. Nem o riso nem a indignac¸a~o parecem ter a mi´nima importa^ncia para o governo.
Depois de trucidar os valores do movimento democra´tico que os elegeu, os detentores do poder avanc¸aram sobre a li´ngua e arrematam mandando a lo´gica elementar para o espac¸o. A ta´tica se estende para o pro´prio campo de apoio. Protestar contra o dinheiro de Teodoro Obiang, da Guine´ Equatorial, no carnaval carioca e´ hipocrisia: afinal, as escolas de samba sempre foram financiadas pela contravenc¸a~o.
O intelectual da Guine´ Juan Toma´s A´vila Laurel escreveu uma carta aos cariocas dizendo que Obiang gastou no ensino me´dio e superior de seu pai´s, em dez anos, menos o que investiu na apologia da Beija-Flor. E conclui alertando os cariocas para a deme^ncia que foi o desfile do carnaval de 2015.
O pro´prio A´vila afirma que na~o ha´ nu´meros confia´veis na execuc¸a~o do orc¸amento da Guine´ Equatorial. Obiang na~o deixa espac¸o para esse tipo de comparac¸a~o. Tanto ele como Dilma, cada qual na sua esfera, constroem uma versa~o blindada a`s ana´lises, comparac¸o~es nume´ricas e ao pro´prio bom senso.
O mundo e´ um espac¸o de alegorias, truques e efeitos especiais. Nicola´s Maduro e Cristina Kirchner tambe´m constroem um universo pro´prio, impermea´vel. Se for questionado sobre uma determinada estrate´gia, Maduro podera´ dizer: um passarinho me contou. Cristina se afoga em 140 batidas do Twitter: um dia fala uma coisa, outro dia se desmente.
Numa intensidade menor do que na Guine´ Equatorial, em nossa Ame´rica as cabec¸as esta~o caindo. Um promotor morre, misteriosamente em Buenos Aires, o prefeito de Caracas, Antonio Ledezma, so´ e indefeso, e´ arrastado por um pelota~o da poli´cia poli´tica bolivariana.
Claro, e´ preciso denunciar, protestar, como fazem agora os argentinos e os venezuelanos. Mas a tarefa de escrever artigos, de argumentar racionalmente, parece-me, no Brasil de hoje, ta~o antiga como o ensino do latim ou o canto orfeo^nico.
Alguma evide^ncia, no entanto, pode e deve sair da narrativa dos pro´prios bandoleiros. Quase tudo o que sabemos, apesar do excelente trabalho da Poli´cia Federal, veio das delac¸o~es premiadas.
Alguns dos autores da trama esta~o dentro da cadeia. Na~o escrevem artigos, apenas mandam bilhetes indicando que podem falar o que sabem.
Ao mesmo tempo que rompe com a lo´gica elementar, o governo prepara sua defesa, organiza suas linhas e busca no fundo do colete um novo juiz do Supremo para aliviar sua carga punitiva. O relator Teori Zavascki, na pra´tica, foi bastante compreensivo, liberando Renato Duque, o u´nico que tinha vi´nculo direto com o PT.
Todas essas manobras e contramanobras ficara~o marcadas na histo´ria moderna do Brasil. Essa talvez seja a raza~o principal para continuar escrevendo.
Dilmas, Obiangs, Maduros e Kirchners podem delirar no seu mundo fanta´stico. Mas vai chegar para eles o dia do vamos ver, do acabou a brincadeira, a Quarta-Feira de Cinzas do deli´rio autorita´rio.
Nesse dia as pessoas, creio, tera~o alguma complace^ncia conosco que passamos todo esse tempo dizendo que dois e dois sa~o quatro. Constrangidos com a obviedade do nosso discurso, seguimos o nosso caminho lembrando que a opressa~o da Guine´ Equatorial e´ a histo´ria escondida no Sambo´dromo, que o esquema de corrupc¸a~o na Petrobra´s se tornou sistema´tico e vertical no governo petista.
Dilma voltou mais magra e diz que seu segredo foi fechar a boca. Talvez fosse melhor levar a ta´tica para o campo poli´tico. Melhor do que dizer bobagens, cometer atos falhos.
O u´ltimo foi confessar que nunca deixou de esconder seus projetos para ampliar o Imposto de Renda. Na Dinamarca (COP 15), foi um pouco mais longe, afirmando que o meio ambiente e´ um grande obsta´culo ao desenvolvimento.
O Pai´s oficial parece enlouquecer calmamente. E´ um pouco redundante lembrar todas as roubalheiras do governo. Ale´m de terem roubado tambe´m o espac¸o usual de argumentac¸a~o, voce^ tem de criticar politicamente algue´m que na~o e´ poli´tico, lembrar o papel de estadista a uma simples marionete de um partido e de um esquema de marketing.
O governo decidiu fugir para a frente. Olho em torno e vejo muitas pessoas que o apoiam assim mesmo. Chegam a admitir a roubalheira, mas preferem um governo de esquerda. A direita, argumentam, e´ roubalheira, mas com retrocesso social. Alguns dos que pensam assim sa~o intelectuais. Nem vou discutir a tese, apenas registrar sua grande dose de conformismo e resignac¸a~o.
Essa resignac¸a~o vai tornando o Pai´s estranho e inquietante, muito diferente dos sonhos de redemocratizac¸a~o. O rei do carnaval carioca e´ um ditador da Guine´ e temos de achar natural porque os bicheiros financiam algumas escolas de samba.
A ta´tica de definir como hipocrisia uma expectativa sincera sobre as possibilidades do Brasil e´ uma forma de queimar esperanc¸as. Algo como uma introjec¸a~o do preconceito colonial que nos condena a um papel secunda´rio.
Na~o compartilho a euforia de Darcy Ribeiro com uma exuberante civilizac¸a~o tropical. Entre ela e o atual colapso dos valores que o PT nos propo~e, certamente, existe um caminho a percorrer.
Artigo publicado no Estadão em 27/02/2015