• Érika Figueiredo
  • 03/10/2021
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VERDADE SEJA DITA

Érika Figueiredo

 

Estou assistindo a segunda temporada de Truth Be Told (Verdade Seja Dita), na Apple TV. Nesta, Poppy Parnell, vivida por Octavia Spencer, é uma repórter investigativa que, ao tentar desvendar assassinatos, acaba perseguida, ameaçada, e precisa abrir mão de muitas coisas, até do próprio casamento, para chegar à verdade dos fatos.

Mas por que buscar a verdade é tão difícil? Por que esbarramos em tantos obstáculos, inimizades, desconfiança e maledicência, quando desejamos nos valer de honestidade e valores morais, ao revelarmos nossas percepções sobre o que acontece ao nosso redor?

 Porque a verdade é como um leão: assusta, fere, e uma vez solta, não pode ser refreada, nem precisa ser defendida, como bem dizia Santo Agostinho.

            Lembro-me muito da história da verdade e da mentira. Ela é emblemática e fala muito do tempo em que vivemos. É mais ou menos assim: a Mentira convidou a Verdade para banharem-se no rio. Esta, muito desconfiada, não queria ir, mas aceitou o convite, por ter sido a Mentira muito persuasiva.

            Enquanto banhavam-se, a Mentira furtou as roupas da Verdade, vestiu-as e fugiu, deixando a Verdade para trás, nua e sozinha. Chegou à cidade e foi logo se apresentando como se fosse a Verdade, afinal, estava vestida com as roupas daquela, disfarçada. Todos acreditaram e receberam-na muito bem.

            A verdade chegou à cidade, tentando cobrir-se com arbustos. Ao revelar quem era, foi destratada e tida como louca. Diziam-lhe que havia apenas uma Verdade, e que esta já estava ali. A Verdade, então, humilhada, triste e envergonhada, foi-se embora e nunca mais voltou. A Mentira ali viveu, feliz para sempre.

            E assim acontece com a Civilização. Sócrates, há quase 2500 anos, foi perseguido e preso, pelas verdades que propagava. Quando perguntado sobre a crise ética pela qual Atenas passava, honestamente respondia que, enquanto os homens não evoluíssem, as instituições tampouco se modificariam, pois estas eram ocupadas por esses mesmos homens, de cuja moral se duvidava.

            Ser verdadeiro tem um preço. Pode ser o do isolamento, ou da antipatia social. Pode ser o da perseguição. Pode, ainda, ser o das calúnias que serão ditas a respeito de quem, com sinceridade, defende suas posições. 

            Como dizia Santo Agostinho, a verdade impõe-se sobre todas as demais narrativas. Em determinado momento, a coerência abandona os que não têm razão, e apenas a lógica prevalece, deixando pra trás até mesmo uma boa retórica.

            Mas o que é a retórica? Olavo de Carvalho, em seu magnífico livro Aristóteles sob Nova Perspectiva, fala dos 4 discursos aristotélicos, dividindo-os em poético, retórico, dialético e analítico. Ora, bolas, o que é isso? Eu explico:

            Há quatro etapas do convencimento humano, e quem as domina, chega à verdade. Elas vão se aperfeiçoando, da primeira à quarta, tornando-se mais próximas dos fatos reais, na medida que avançamos nestas, como se fossem degraus a serem galgados.

            A primeira etapa do convencimento humano é a poética. Tudo que você lê, ouve, assiste, contempla, tudo que aciona seus  sentidos, forma uma convicção prévia em você, que é a sua percepção acerca daquilo. Esse é o primeiro estágio, o momento de contato com algo que lhe foi apresentado, que forma em seu cérebro uma noção inicial.

            A segunda etapa do convencimento é a retórica, o discurso persuasivo de que alguém lança mão, a fim de demonstrar a pertinência de sua opinião, fazendo com que seu interlocutor adote a mesma posição. Trata-se de uma habilidade, uma estratégia humana, que é a capacidade de alguém, de convencer os demais.

            A terceira etapa do convencimento é a dialética. Aqui, o destinatário do discurso ou da informação, confronta-o com outras idéias e versões, a fim de checar sua veracidade, para que possa, então, chegar à certeza.

            Chegamos, enfim, à quarta etapa do convencimento, que é a analítica. Depois de ouvir, absorver, coletar opiniões e confrontá-las, a pessoa chega à verdade, ao que efetivamente representa aquilo, e tem o conhecimento pleno do que faz uso em sua vida. Na fase analítica, a verdade se revela, plena e indiscutível, após a análise pormenorizada de tudo que lhe foi oferecido.

            Ocorre que, na modernidade, grande parte das pessoas estaciona nas etapas um e dois. Como assim? Bem, após terem tido contato com a informação ou o discurso, fazem uma análise superficial, como por exemplo ler apressadamente uma manchete de jornal, e postam-se a emitir opiniões, rechaçar oponentes e elevar à categoria de verdade absoluta algo que sequer foi debatido.

            O que deveria ser apenas o primeiro degrau, torna-se incontestável, e é alçado a um lugar onde sequer poderia estar, uma vez que nem à discussão retórica foi submetido. Tais indivíduos contentam-se com a etapa poética do convencimento humano, acreditando em qualquer coisa que ouvem, assistem ou lêem, sem capacidade de análise crítica ou coerência avaliativa.

            Temos, também, os que, após quererem inteirar-se mais sobre um tema, contentam-se com uma defesa apaixonada de um ponto de vista, sem confrontá-lo, dialeticamente, com outra opinião, movendo-se pela imagem de quem fala, ou por sua projeção pessoal.

A estes, a camada retórica basta. Um perfil de instagram pode, perfeitamente, ser por estas pessoas elevado a um patamar de oráculo do saber, sem ser contestado, por milhões de seguidores. Os anos 2000 nos trouxeram a internet, e com ela, os influenciadores digitais profissionais.

Para os que não caem nessas armadilhas da poética e da retórica, resta avançar, e fazer uma comparação de discursos e opiniões. Na dialética, muitas versões sequer se sustentam, no confronto com outras, por não possuírem qualquer conteúdo ou veracidade.

Por esse motivo, é fundamental chegar-se a essa etapa do discurso, a fim de que se depreenda o quanto este é apenas inflamado e vazio, ou se possui substrato e coerência, para ser considerado verdadeiro.

Ocorre que, infelizmente, pouquíssimos são os que, hoje, conseguem, pelo bombardeio midiático e pela polarização social e política do mundo, seguir em busca da verdade da etapa analítica.

Vivemos na instantaneidade, na era do sucesso imediato e das verdades absolutas, defendidas por muitos, sem qualquer fumaça de razão. Mais do que ser honesto ou verdadeiro, o que importa é estar em evidência, com o que se diz e faz, ainda que seja esse conteúdo pornográfico, mentiroso, vazio ou amoral.

            E a verdade, onde fica? Bom, é com imenso pesar que lhes informo que a verdade, que foi exposta nua e crua, tendo sido desacreditada e humilhada, fugiu pra bem longe e talvez não volte mais a habitar o planeta Terra e suas incongruências diárias.

*    Publicado originalmente no Portal Tibuna Diária.