• Marcelo Assiz Ricci - Juiz de Direito
  • 01/07/2015
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SOBRE A IMPUTABILIDADE PENAL – ANÁLISE DE (MAIS) UM ARGUMENTO INCONSISTENTE

Frequentemente, a redução da maioridade penal é assunto de destaque em vários meios de comunicação. Isso ocorre,sobretudo nos últimos tempos, ante o anúncio do Presidente do Congresso Nacional que os projetos de emenda constitucional e de lei sobre o assunto seriam colocados em discussão e votação, o que efetivamente começou a acontecer no último do dia 30 de junho.
Colocou-se em pauta o substitutivo do Deputado Laerte Bessa (PR-DF) – que previa a redução da maioridade penal apenas aos crimes hediondos e equiparados, homicídio doloso, lesão corporal grave e seguida de morte, e roubo qualificado – à proposta original de Emenda Constitucional 171/93, de autoria do – à época – Deputado Benedito Domingos (PR-DF), onde não consta a distinção de tratamento em razão da natureza da infração penal.
Apesar de a votação do substitutivo terminar com 303 votos a favor, não se atingiu o quórum qualificado necessário – 308 votos – para a aprovação de uma emenda constitucional.
Dedicam-se ao tema vários autores, de diversos ramos das ciências humanas.
No entanto, na última semana, surgiu um novo argumento contrário a essa modificação, cuja abordagem se faz necessária.
É possível encontrar, em alguns sítios na rede mundial de computadores, artigos que relacionam a redução da menoridade penal à possibilidade de se tornar legal o consumo de bebidas alcóolicas e a exploração sexual de menores de dezoito anos.
Ante o fato de que a maioria da população é favorável à redução da maioridade penal, os teóricos que ainda resistem à idéia lançam teses, no mínimo, equivocadas.
Antes de tudo, é necessário colocar as idéias em boa ordem.
Peço vênia, de antemão, àqueles que os tem bem delineados na memória, mas para trazer luz à essa linha de raciocínio e desfazer alguns enganos, é oportuno fazer uma digressão e tecer considerações sobre alguns conceitos.
Primeiramente, aqueles aplicáveis aos ramos do Direito de maneira geral.
Comecemos pela personalidade. Ela é entendida como “a aptidão para adquirir direitos e contrair obrigações”[1].
Da personalidade se extrai a capacidade, que podemos conceituar como a “aptidão para adquirir direitos e exercer, por si ou por outrem, atos da vida civil”[2].
Finalmente, o conceito de responsabilidade. Juridicamente, em sentido amplo, implica na obrigação de todos os sujeitos de direitos em responder pelas consequências dos atos que praticam.
Responsabilizar alguém “é considerar-lhe responsável por alguma coisa, fazendo-o responder pelas consequências de uma conduta contrária ao dever, sendo responsável aquele indivíduo que podia e devia ter agido de outro modo”[3].
Por sua vez, responsabilidade civil é “a aplicação de medidas que obriguem alguém a reparar o dano moral ou patrimonial causado a terceiros em razão de ato do próprio imputado, de pessoa por quem ele responde, ou de fato ou coisa ou animal sob sua guarda (responsabilidade subjetiva), ou, ainda, de simples imposição legal (responsabilidade objetiva)”[4].
No Direito Penal, responsabilidade “é a obrigação que alguém tem de arcar com as consequências jurídicas do crime. É o dever que a pessoa tem de prestar contas de seu ato”[5].
Capacidade penal é “o conjunto das condições exigidas para que um sujeito possa tornar-se titular de direitos ou obrigações no campo do Direito Penal”[6].
Imputabilidade é a capacidade que a pessoa tem de compreender o caráter ilícito de sua conduta e de se orientar de acordo com este entendimento.
A capacidade penal surge em um momento anterior à imputabilidade, pois diz respeito a uma condição geral, aferível em toda uma comunidade sujeita à lei penal de um determinado local. A imputabilidade, por sua vez, é aferível no momento contemporâneo ao crime.
O sujeito ativo de um crime é quem pratica a conduta descrita na norma como delituosa.
O sujeito passivo de um crime, por sua vez, “é o titular do bem jurídico lesado ou ameaçado pela conduta criminosa”[7].
Depois dessa rápida digressão, é possível melhor explorar o assunto.
Os diferentes ramos do Direito lidam com o critério etário de forma distinta, de acordo com as particularidades das matérias a serem tuteladas.
O Direito Constitucional estabelece, por um lado, a possibilidade de votar, ou eleger, a partir dos dezesseis anos e, por outro lado, diferentes limites etários para ser eleito, conforme o cargo a ser disputado.
O Direito do Trabalho permite o trabalho ao maior de quatorze anos – como aprendiz -, conferindo, a partir dos dezesseis anos, capacidade para dar recibo de pagamento de salários (artigos 402 e 439, da CLT). É admissível, ainda, o trabalho artístico de crianças, seja com fundamento no ECA (artigo 149, inciso II), ou na Convenção 138, da OIT.
O Direito Tributário prevê a possibilidade de exigir tributo de qualquer pessoa, independentemente da idade, a partir da simples ocorrência do fato gerador.
Aproveitando como exemplo o trabalho artístico de criança: se esta atividade proporcionar ao trabalhador infantil uma renda anual acima da respectiva faixa de isenção, acarretará na incidência do fato gerador de imposto de renda e a obrigará ao pagamento do tributo.
No entanto, sua exigibilidade, em caso de descumprimento desta obrigação, deverá ser cotejada com os conceitos de personalidade e de capacidade, já mencionados, assim como o instituto da representação processual, caso uma demanda judicial seja necessária.
Em um passado recente, sob a égide do Código Civil de 1916, o ordenamento jurídico conviveu com tratamentos etários diferentes para as capacidades civil e penal.
Enquanto se atingia a capacidade civil plena aos vinte e um anos (artigo 9º do Código Civil de 1.916), considerava-se – e ainda se considera – o agente imputável penalmente a partir de dezoito anos (artigo 27 do Código Penal).
Somente tivemos a equivalência entre a capacidade civil plena e a imputabilidade penal com a promulgação do Novo Código Civil, em 2.002.
Desta forma, é de uma clareza hialina que o tratamento de acordo com a idade da pessoa vai depender do bem ou interesse jurídico a ser tutelado.
É perfeitamente possível, dentro do ordenamento jurídico brasileiro, estabelecer especial proteção, conforme o bem ou interesse jurídico a ser tutelado, ao sujeito passivo de uma infração penal de acordo com determinada faixa etária.
O conceito de imputabilidade penal, especialmente em seu aspecto biológico – que é o objeto de nosso tratamento -, em nada isto influencia, pois diz respeito ao pólo oposto da relação jurídica penal, qual seja, ao sujeito ativo.
Superadas e estabelecidas as necessárias premissas, é possível se dedicar especificamente aos argumentos mais recentes que justificariam a manutenção da idade da imputabilidade penal como prevista na Constituição, objetivo desta análise.
Eventual alteração da norma constitucional para a diminuição da maioridade penal não implicará, automaticamente, na modificação do conceito de criança e de adolescente, previsto no artigo 2° da Lei 8.069, de 13 de julho de 1.990.
O dispositivo tem por objetivo conferir especial proteção a determinada fase da vida de pessoas em desenvolvimento, e nada tem a ver com o objetivo de imputar responsabilidade em razão da prática de ato ilícito.
Portanto, é um equivoco afirmar que a mudança legislativa em analise acarretaria na alteração automática do bem jurídico tutelado pelo Titulo VII, do Estatuto da Criança e do Adolescente.
E, por conseguinte, que o consumo de bebidas alcoólicas e participação, de qualquer forma, em produção pornográfica, estaria permitida aos maiores de 16 e menores de 18 anos.
Sob o mesmo raciocínio, incorre-se no mesmo equívoco ao afirmar que essa redução implicará mudanças nas regras para o trabalho em condições especiais (noturno, insalubre, perigoso, etc).
A proteção feita pela norma, nestes casos, não se dá em razão da imputabilidade penal, mas por conta da maior fragilidade do trabalhador em razão de sua faixa etária.
A única mudança que se vislumbra automaticamente possível, em virtude dessa redução, é relativa à obtenção de permissão para conduzir veículos.
Isto porque o artigo 140, inciso I, do Código Nacional de Transito prevê, expressamente, que um dos requisitos a serem preenchidos pelo candidato a condutor é ser penalmente imputável.
Portanto, nesses tempos em que a imensa maioria da população é favorável à redução da idade da imputabilidade penal, é preciso tomar muito cuidado com as teses lançadas por aqueles que são contra essa alteração.
Como se viu, em uma exposição de argumentos contrários à chamada redução da maioridade penal, cujo objetivo é sensibilizar a opinião pública, ante o fracasso das justificativas anteriores, verifica-se uma gritante confusão de conceitos.
O Direito é composto por vários ramos. Longe de serem compartimentos estanques, eles devem formar um conjunto que deve prezar pela unidade no emprego de conceitos e pela harmonia de todo o sistema.
Denota-se, cada vez mais, que se mostra imperiosa uma maior investigação, para compreender com clareza se uma exposição de raciocínio é correta ou equivocada.
A defesa de um posicionamento é perfeitamente válida, mas estamos a viver um momento em que a atenção deve ser redobrada, para que sejam identificadas e descartadas as construções de argumentos que acarretem em confusão e em indução do receptor a erro.
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[1] Sílvio de Salvo Venosa, Direito Civil, volume I, 5ª edição, p. 141
[2] Washington de Barros Monteiro, Curso de Direito Civil 1º volume, 31ª edição, p. 57
[3] Adauto de Almeida Tomaszewski em Rui Stocco, Tratado de Responsabilidade Civil, 7ª edição, p. 111
[4] Maria Helena Diniz, em Rui Stocco, Tratado de Responsabilidade Civil, 7ª edição, p.112
[5] Magalhães Noronha, em Damásio E. de Jesus, Curso de Direito Penal 1, 25ª edição, p. 470
[6] Biagio Petrocelli, em Damásio E. de Jesus, Curso de Direito Penal 1, 25ª edição, p. 167
[7] Júlio Frabbrini Mirabete, Manual de Direito Penal, 12ª edição, p. 121