(Publicado no Estadão)
Ora, direis, a multidão que foi à rua manifestar-se, em plena ordem e sem quebra-quebra, não se compara em volume com as das jornadas de 2013, queixando-se da gestão pública em geral, ou as mais recentes, exigindo o impeachment de Dilma Rousseff. É útil constatá-lo, não apenas para ser realista, mas também para reconhecer que vai ser difícil mobilizar massas empenhadas em livrar-se de um atrapalho de vida pior do que aquela senhora que, para não perder o costume de mentir, atende ao telefone da própria casa dizendo ser uma tal de Janete. Por incrível que pareça, ainda há militantes nostálgicos da maré mansa dos tempos da adesão paga em moeda circulante ou sanduíches de mortadela, que tentam desmoralizar a vontade popular atribuindo-a a “golpismo”. E mais: nem esta mera constatação os convencerá do contrário.
Seja como for, será sempre útil lembrar que os cidadãos vestiram camisetas verdes e amarelas e saíram de casa só para cantar o Hino Nacional, gritar “Força Moro” e “Fora Réunan” (uma cedilha e uma vogal no meio fazendo a diferença). E para mostrar que a maioria silenciosa não perdeu a voz nem o juízo. Mas resolveu deixar a toca para falar. A consoante apoiando o juiz e negada ao nada nobre parlamentar diz respeito a uma cena específica que os manifestantes não admitem omitir ou relegar. Aquela em que o presidente do Congresso, ou seja, do Poder que legisla na República, expôs o agente da lei às contrariedades do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Gilmar Mendes. Tal fato se tornou ainda mais sintomático quando este deixou a cumbuca emborcada do Senado para proferir um dos três votos, vencidos por oito, da egrégia Corte. Esta, simultaneamente, tornou réu o presidente da sessão em que, em tese, se debatia uma lei de iniciativa dele para punir abuso de autoridade.
Nessa sessão, o ministro do STF reclamou do relatório aprovado por 450 votos a 1 e 3 abstenções por achar inadmissível reduzir os efeitos do habeas corpus, criar um informante profissional, exigir teste de probidade de servidores públicos e/ou admitir provas ilícitas produzidas de boa-fé (good will). Dessa forma, faltou com o dever de dizer a verdade: as quatro novidades impróprias citadas já haviam sido amputadas do relatório, quando este fora aprovado por unanimidade na Comissão Especial da lei batizada de “10 Medidas Contra a Corrupção”. E dele não constavam mais quando nove emendas o adaptaram à operação “Menas Lava Jato”.
Sérgio Moro ainda teve de enfrentar o ataque histérico do senador Lindbergh Farias (PT-RJ), que o acusou de haver violado a lei ao mandar conduzir coercitivamente o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva para depor em processo na Polícia Federal. Na sessão, o juiz federal cunhou a expressão “emendas da meia-noite” para definir as alterações que inverteram o sentido da proposta apresentada pelos procuradores federais com o aval de 2 milhões 400 mil assinaturas de cidadãos, tendo cinco delas sido patrocinadas pelo Partido dos Trabalhadores (PT). Em que pesem as evidências de que nada que ingressa na Câmara é infenso a mudanças pelos deputados, talvez fosse o caso de acrescentar que a aprovação das modificações, embora tendo obtido maiorias significativas, não foi discutida previamente. O que vale é a votação, não a discussão, é claro. Mas será conveniente dispensar o debate?
É pouco provável que os embandeirados, mas não empoderados, das ruas tenham atentado para tantas firulas. Mas ninguém lhes pode negar razões para reclamarem alto e bom som, sem nada quebrar, mais protagonismo de representados em decisões dos soit-disant representantes. Daí, o ritmo das panelas à noite e o ronco nas ruas sob chuva ou sob sol.
De posse da sanidade mental e da pré-racionalidade das multidões, que o relator da lei do abuso de autoridade (apud Réunan), Roberto Requião, tentou negar-lhes, os cidadãos não consumiram alfafa, mamona (oleaginosa venenosa) nem Rivotril, como o grosseiro senador afirmou no Twitter. Nem precisaram do ranchinho da militância. Expuseram-se ao verão e manifestaram sua sensibilidade, ao contrário do parlamentar, notório pelo hábito de latir ante o computador, mas não morder ao relento.
Nisso ele empatou com seu correligionário de partido e adversário ideológico Michel Temer, investido da Presidência da República pela absoluta falta de predicados da titular da chapa com quem venceu dois pleitos seguidos. Enquanto, no sábado, seus antecessores Lula e Dilma homenageavam as cinzas do mais bárbaro e longevo tirano da travessia do século 20 para o 21 em Cuba, Temer prestou homenagens póstumas às vítimas da picaretagem da LaMia e da Conmebol em Chapecó. E expôs-se às vaias ao comparecer (sem falar) ao velório no estádio. Foi obsequiado pelo silêncio das arquibancadas, em que não se ouviu um pio, palma, berro ou apupo. E também saiu ileso dos protestos de domingo, em que, ao contrário do que seu grupo íntimo no Planalto previra, conforme noticiado no Estadão, ninguém se lembrou dele. Para o bem ou para o mal.
Como de hábito, a maioria silenciosa deu uma lição de sabedoria às elites incautas. O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, que havia chamado o governo Temer de “pinguela”, ainda desfrutando a condição de hóspede de um almoço em palácio, clamou por eleição direta no caso de o governo não sobreviver à pressão da crise econômica. E o povo na rua mostrou que sabe que o presidente não é o ideal para a angústia do momento. Mas é o viável. O príncipe dos sociólogos não atentou para o fato de a eleição direta para presidente só ser prevista na Constituição até o fim do mês. Depois do réveillon, ela terá de ser indireta, no Legislativo.
O silêncio dos enlutados na Arena Condá sob a chuva de sábado e a omissão dos embandeirados nas ruas do Brasil à sombra do domingo ensolarado na maior parte delas não absolveram Temer de suas hesitações, mancadas e fraquezas. Apenas reconheceram em suas eloquência e queixa pelo avesso que nada pode ser pior para o Brasil agora do que uma – aí, sim – ruptura institucional, qualquer que seja ela. Definitivamente, o povo não é golpista.