Publicado no Estadão
Diante da inversão de valores perpetrada pela Câmara na retaliação da proposta das medidas de combate à corrupção e da tentativa do réu que preside o Senado de votá-la de afogadilho na Casa revisora, é de se perguntar qual é a parte do repúdio social a manobras espúrias que Suas Excelências ainda não entenderam.
Hoje estão marcados protestos cuja motivação mais forte reside nas recentes atitudes do Congresso. A pauta é dispersa, embora o recado da sociedade seja claro: "Não me enganem, porque definitiva e claramente eu não gosto". Retrato disso foi o contraste entre a animosidade latente contra o juiz Sérgio Moro na Mesa Diretora e a calorosa recepção dada a ele por parte de funcionários do Senado quando do debate, no plenário, sobre a Lei de Abuso de Autoridade.
Na rua, ocorre do mesmo modo. Só que lá o juiz (para além da figura de Moro) é tratado também com apreço e os políticos com menosprezo. O paradoxo é estes dependem de votos para seguir na carreira, mas são aqueles (magistrados, promotores, procuradores e policiais) os que falam o idioma da legalidade, valor finalmente em alta na sociedade brasileira.
Em baixa na opinião do público o Congresso está faz tempo. O dado novo é a manifestação coletiva da condenação aos atos cometidos no ambiente legislativo, justamente o que abriga representantes da população, cujo dever de ofício deveria ser o de zelar pelos interesses dos brasileiros, senhores de seus mandatos.
A Câmara e o Senado vêm de um processo legal e legítimo de impeachment presidencial, mas em nenhuma das duas Casas prepondera a compreensão de que a convergência com a posição da maioria expressa nos protestos contra os governos do PT e confirmada pelas pesquisas de opinião não dá ao Parlamento um salvo-conduto para atuar ao seu bel-prazer sem ser importunado.
Ao contrário: o conjunto de razões pelas quais deputados e senadores afastaram do poder o grupo liderado de direito por Dilma Rousseff e de fato por Luiz Inácio da Silva, os obriga a seguir o padrão de exigência aplicado para sustentar o afastamento. O grupo que assumiu o governo, aí incluídos os congressistas aliados, não pode dar-se ao desfrute de adotar o lema "faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço". O mesmo aplica-se ao PT que agora de volta à oposição atua como se nada tivesse a ver com o poço fundo em que jogou o País.
Suas Excelências abusaram e se lambuzaram. Aqueles recentemente apeados do poder, no assalto ao Estado. Seus substitutos, na agressão à paciência e à capacidade de discernimento dos cidadãos. À exceção de um e outro exagero – imediatamente apontados ou corrigidos – os responsáveis pelas investigações e condenações em curso até agora se mantiveram nos padrões da lei, conforme atesta o aval dos tribunais superiores à quase totalidade das ações.
Abuso de autoridade pronto e acabado ocorreu no Congresso e, em vários momentos, no Executivo. Ou não é um abuso inverter o espírito das propostas de combate à corrupção para aprovar medidas em defesa de corruptos e de ataque aos encarregados de investigá-los? Ou não se configura um abuso da investidura do cargo o réu que preside o Senado comandar manobra para aprovar a lambança tal como saiu da Câmara de maneira açodada a fim de dar o fato como consumado?
Congressistas falaram de corda em casa de enforcado, acabaram por enrolar os respectivos pescoços ao atiçar a população e alimentar a motivação aos protestos marcados para hoje e tornarem-se alvo principal das manifestações. A depender da amplitude e densidade da grita geral, nossas autoridades legislativas terão dado tiros que saíram pela culatra para se alojar no coração do Parlamento.