(Publicado originalmente em O Estado de São Paulo de 25/07/2015)
A encíclica Laudato Si, do papa Francisco, emprega 74 vezes a palavra “natureza”, 55 vezes “meio ambiente” e uma só vez a expressão “Jesus Cristo”, aquela que designa a segunda pessoa da Santíssima Trindade. Já o mestre, não divinizado, chamado apenas de Jesus, aparece 22 vezes, o mesmo número de citações de “tecnologia” e menos de metade da “ciência”, evocada 55 vezes. Contudo, a Academia Pontifícia de Ciências, com mais de uma dezena de Prêmios Nobel, parece não ter contribuído muito e não é evocada. A palavra democracia não existe no texto.
A encíclica é densa. A questão ecológica é abordada não apenas em sua dimensão “natural”, mas no contexto humano, social, político, religioso e cultural. Fato raro, o papa fala na primeira pessoa do singular e deixa de lado o “nós”, característico de pronunciamentos pontifícios. Ele se dirige a crentes e não crentes e evoca a responsabilidade de todos em gerir a Terra: nossa casa comum. E defende um crescimento econômico com temperança e sobriedade, fundado em mudanças de comportamentos.
A encíclica não usa uma única vez as palavras capitalismo e socialismo. Já alguns “ismos” são de uso amplo: consumismo, individualismo, relativismo, antropocentrismo, ceticismo. Sobre um documento que coloca muitos questionamentos, cabem algumas questões.
Ciente da complexidade do tema, o papa reitera: “Há discussões sobre problemas relativos ao meio ambiente, onde é difícil chegar a um consenso. Repito uma vez mais que a Igreja não pretende definir as questões científicas nem substituir-se à política, mas convido a um debate honesto e transparente, para que as necessidades particulares ou as ideologias não lesem o bem comum” (188). Pode-se indagar: os homens e as sociedades podem ser geridos por consenso? Quais ideologias lesam o bem comum? Quem pode identificá-las? Qual a diferença entre necessidades (termo da encíclica) e interesses (termo na mídia) particulares na temática ambiental?
O balanço ecológico do progresso planetário, logo no primeiro capítulo, é negativo, pessimista e pouco equilibrado. Ele fala de poluição generalizada provocando milhares de mortes prematuras. Contudo, mais generalizado ainda foi o aumento da esperança de vida e da educação em todo o planeta, acompanhando o crescimento industrial e a tecnificação da agricultura. Nunca se viveu tanto, nunca se comeu tanto nem se estudou e se votou tanto em todo o planeta.
Problemas de poluição não existiam em sociedades pré-históricas. Se eles são concomitantes ao desenvolvimento, também foram e são resolvidos pelos avanços da ciência e da tecnologia. O desenvolvimento econômico é essencial para generalizar essas soluções e não transferir problemas. A exportação de indústrias poluidoras para países periféricos, estratégia de limpeza ambiental praticada há décadas por nações desenvolvidas, não foi lembrada na encíclica.
“Em muitos lugares do planeta, os idosos recordam com saudade as paisagens de outrora, que agora veem submersas de lixo” (21). Essa afirmação parece um pouco reducionista quando consideradas as condições insalubres nas quais se vivia até o começo do século 20 na Europa e nas quais ainda vive grande parte da população mundial. Não há razão para não investir numa gestão mais eficiente dos resíduos e na redução de sua produção, mas as paisagens de outrora, mesmo na Europa, sem drenagem ou barragens, eram marcadas por enchentes, epidemias, doenças crônicas, períodos de fome, com pessoas subnutridas em hábitats insalubres, sem aquecimento ou energia elétrica.
Sociedades economicamente desenvolvidas têm meios para cuidar de sua biodiversidade, reduzir a poluição, proteger e manter limpos mares e rios. Elas universalizaram o saneamento básico com tecnologias avançadas de gestão de efluentes. Em países ricos, o ciclo de vida das mercadorias é planejado; o lixo é classificado e reciclado; ecossistemas são preservados e desfrutados por uma população com amplas garantias sociais e acesso a intensa vida cultural.
Ao associar o uso de insumos modernos na agricultura apenas a seus possíveis efeitos tóxicos, a encíclica não faz justiça à segurança alimentar conquistada por recordes de produção. Nem aos ganhos de qualidade nutritiva e sanitária e à queda no preço dos alimentos que esses mesmos insumos, frutos de ciência e tecnologia, permitiram obter, beneficiando, sobretudo, os mais pobres. Unilaterais, os oráculos consultados pelo papa não tiveram aqui e alhures o justo equilíbrio. “Para os países pobres, as prioridades devem ser a erradicação da miséria e o desenvolvimento social dos seus habitantes” (172), diz o papa. Como atingir esses objetivos sem crescimento econômico e novas técnicas e tecnologias? Por consenso?
O papa Paulo VI já evocara o tema ambiental, em 1971, na Pacem in terris. S. João Paulo II foi o primeiro a convidar para uma conversão ecológica, apesar de a mídia tratar a ideia como novidade da Laudato Si. Ele o fez em 2002, com o patriarca de Constantinopla, Bartolomeu I, numa declaração comum pela salvaguarda da Criação, em Veneza.
Bento XVI tratou de ecologia ao longo de todo o pontificado. Graças a ele, o menor Estado do planeta tornou-se neutro em emissão de carbono e adotou metas ambientais ambiciosas. Não há indústria poluidora em seus 44 hectares (só faltava!). O papamóvel foi transformado em veículo flex. Painéis solares fornecem energia para a sala de audiências ao lado da Basílica de S. Pedro. Bento XVI também plantou uma floresta de 7 mil hectares na Hungria, destinada a compensar as emissões de gases de efeito estufa do Vaticano. Se o papa Francisco pode dirigir injunções ambientais aos outros países, é porque também, de certa forma, o Vaticano fez sua lição de casa.
*Evaristo E. De Miranda é pesquisador da Embrapa, doutor em Ecologia, é diretor do Instituto Ciência e Fé.