Por natureza, toda esquerda é libertária: adora libertar as balas dos tambores de seus revólveres. Que seus dissidentes insistam em cruzar a trajetória dos disparos é uma infeliz coincidência – nada que macule os esforços da utopia.
Os regimes de esquerda instalam-se para abolir todas as prisões. Quem poderia resistir a tão nobre ideal, senão uma raça de víboras? Evidentemente, toda resistência à esquerda há que ser encarcerada.
Um governo de esquerda é necessário para que todos sejamos iguais. Nada mais justo que quem o torne efetivo venha elevado acima, mas muito acima dos demais. O governante de esquerda é ídolo, é soberano, é deus – e quem não lo crê está morto. Ou estará, após julgamento sumário por tribunal popular de exceção, cujo costume fará regra.
A esquerda é um paradoxo para a doxa. É um fim em si mesma. É um moto contínuo em um poço sem fundo. É Cronos entre os gregos, a devorar os próprios filhos. É a grande aranha de Tolkien, cuja fome um mundo inteiro não poderia saciar. "Fuzilamos? Sim, fuzilamos e continuaremos fuzilando sempre que necessário. Nossa luta é dedicada à morte", bradou um certo comandante argentino. "Caminante, no hay camino - se hace camino al andar". E ai daquele que pensar em desviar do abismo logo adiante – bala na nuca, conta à viúva. A esquerda é um morrer constante. O cristão, pelo martírio, alcança a Vida Eterna. O militante tombado assegura, ao revés, que a destruição não tenha fim.
Stálin ordenava sacar das fotos de glórias passadas os traidores de sua revolução. "Voltar atrás? Nem para pegar impulso!", é hoje ainda lema da ilha dos irmãos Castro. Um conservador, diria G.K. Chesterton, consulta sempre a democracia dos mortos, recusando-se a seguir cegamente a arbitrária aristocracia dos que, neste instante, encontram-se vivos. Reconhece no tempo um baú de tesouro inestimável: a sabedoria confiada pelos avós de nossos avós, a ser legada aos netos dos netos. O esquerdista é de outra cepa: dedica-se continuamente a jogar ao mar novos cadáveres e os repescar do oceano, pelo macabro prazer de arremessá-los novamente.
O pior crime em uma organização de esquerda, aquém tão-somente do amor ao próximo acima das abstrações não definidas, é parar. Sim, parar pura e simplesmente. Deixar de pisotear, feito Átila, a grama sob seus pés, para enfim ouvir o silêncio. A harmonia da noite em uma praia deserta, indiferente ao pensamento. Sem uma turba a repetir os jargões de sua garganta, o esquerdista é um nada. Para o conservador, o silêncio é tudo: por ele escuta as regras impressas na natureza das coisas, que serenas se revelam apenas a quem as respeita tais como foram criadas. Não é um fatalista, aprende sim a cultivá-las conforme suas aptidões. Descobre segredos inóspitos na grande aventura do real.
Um deles: não baleá-las, se as quer vivas. Elementar? Nem tanto. Desde 1789*, ao menos, e hoje ainda, a esquerda política, cultural, universal – turbilhão puro, eco de si mesma em constante reinvenção da roda – matou, mata, promete matar, seguirá matando para que tudo possa, garante ela, viver um dia.
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*Datar o sanguinário modus operandi da política sinistra a partir da revolução francesa, seja dito, é generosa concessão. Particularmente, vislumbro suas raízes entre um punhado de heresias tardomedievais e os postulados maquiavélicos (Niccolò Machiavelli, recordemos, viveu de 1469 a 1527) que, esvaziando a Cristandade, convenceriam detentores e persecutores do poder de que a “luta” dispensava os princípios da ética comum, ou que a moral – ah, a moral! – aplicável aos simples, aquela mesma moral não se lhes aplicaria. Uma linhagem que haveríamos de perquirir seguramente até o super-homem niilista. Posturas intelectuais que forjam caracteres patológicos, assinalaria Dostoiévski; indivíduos cuja loucura fundaria civilizações inteiramente calcadas na histeria, arremata Dr. Andrew Lobaczewsk.
Entrementes, não nos pautemos por minha opinião. Deixemos falar ele, o revolucionário, na pessoa do epocal Saul Alinsky. Assim começa seu livro mais notável, fundamental à nova esquerda americana e global: com uma dedicatória “ao primeiro radical...que rebelou-se contra a ordem estabelecida, e o fez tão eficazmente que, ao menos, conquistou seu próprio reino: Lúcifer” ("Rules for Radicals"). Como se vê, 1789 foi singelo novo ato a um terror que precede o homem. Terror tão ancestral quanto a noite, e como a noite a ser vencido pelo dia... Noites e dias; revolução e contrarrevolução.
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