• Ruth de Aquino, revista Época.
  • 14/05/2017
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O JARDIM DAS AFLIÇÕES

 

Na primeira noite eles se aproximam e roubam uma flor do nosso jardim. Boicotam um filme no Festival de Cinema de Pernambuco. E não dizemos nada. Na segunda noite, já não se escondem: pisam o cineasta maldito, matam o contraditório, e não dizemos nada. Até que um dia, o mais frágil deles entra sozinho na sala escura, rouba o projetor e, conhecendo nosso medo, arranca-nos a voz da garganta. E já não podemos dizer nada.

É uma paródia do poema “No caminho com Maiakóvski” (1968), de Eduardo Alves da Costa. Ajuda a ilustrar a pataquada de diretores de sete filmes que retiraram seus curtas do festival. Começaria no dia 23 de maio para celebrar 21 anos de vida. O motivo maior do boicote foi um documentário de 81 minutos, O jardim das aflições, sobre o filósofo de direita Olavo de Carvalho. Os revoltados afirmaram, em nota, que a escolha “favorece um discurso partidário alinhado a grupos que compactuaram e financiaram o golpe ao Estado democrático de direito ocorrido no Brasil em 2016”. O festival foi adiado por causa da debandada. A seleção era de nove filmes. Não seria isso o que se chama diversidade?

“Não é possível ter debate, só entre esquerdistas”, me disse o diretor Josias Teófilo. Ele revelou que sua vida ficou “insustentável” em Brasília depois de resolver filmar Olavo de Carvalho. “Grandes festivais disseram que eu não era bem-vindo e que nunca mais eu conseguiria dirigir nada. Esse documentário foi feito com crowdfunding porque seria impossível tentar a Lei Rouanet. Vivemos a tirania da coletividade sobre o indivíduo. Quem está fora desse establishment de esquerda só encontra má vontade no campo do cinema.”

A patrulha, de esquerda ou de direita, não é só burra, primária e insuportável. É perigosa. Favorece o obscurantismo, a ignorância. Na chamada esquerda brasileira, há grupos numerosos, especialmente no PT, que fazem distinção entre “a censura do bem” e a “censura do mal”. “As ditaduras do bem”, como Cuba e Venezuela, e “as do mal”, de direita. É de uma insensatez frenética e fanática a forma como tantos intelectuais relativizam prisões, torturas, arbitrariedades, corrupção, censura, preconceito sexual, força do Estado... desde que o regime seja de esquerda.

“Esses cineastas que boicotaram o Festival de Pernambuco conseguem ser piores que Mao e Hitler, que assistiam aos filmes antes de censurar. Leonid Brejnev proibiu um filme de Tarkovski, mas assistiu antes. Esse grupo aí não viu e não gostou”, disse o diretor Josias Teófilo. “O jardim das aflições é muito mais metafísico que político. Fala de Aristóteles e Platão. O documentário traz uma mensagem a favor da individualidade. Discorre sobre a morte. Não tem motivo esse desespero todo. Mandei mensagens simpáticas aos colegas revoltados, agradecendo pela divulgação. Eu não podia pagar assessoria de imprensa.”

Olavo de Carvalho tem 70 anos, vive hoje em Petersburg, uma cidade americana de 30 mil habitantes com 80% deles negros. Dá curso on-line de filosofia para 3 mil alunos. É apontado como um dos mentores do conservador Movimento Brasil Livre (MBL), embora recuse esse título e critique “a direita emergente”. É fervoroso opositor do PT e de Dilma. E crítico do governo Temer, que considera ilegítimo. “Como vice, Temer não tem rabo preso, ele é um rabo preso”, disse ao repórter João Fellet, da BBC Brasil, em sua casa.

Militou no Partido Comunista durante a ditadura, foi amigo de José Dirceu, escondeu armas. Já se envolveu com esoterismo e astrologia. Mas se aproximou da Igreja Católica. Hoje, reza antes de dormir. Mantém uma espingarda sobre a cama para defesa pessoal e tem 30 rifles de caça. Olavo de Carvalho é um provocador, um polemista, a favor da “democracia plebiscitária”.

Uma das diretoras que se retiraram da mostra em Pernambuco, Gabi Saegesser, do curta Iluminadas, disse que “O jardim das aflições vai contra qualquer possibilidade de diálogo”, ao falar sobre “um dos maiores representantes do conservadorismo de direita”. Para a cineasta, a presença do título na programação “é como se o festival desrespeitasse a visão política e social de outros filmes”. Não é só Olavo o alvo do boicote. Há outro filme, o longa de Rodrigo Bittencourt sobre as origens do Plano Real. Entre os diretores rebelados, estão Savio Leite, Cíntia Domit Bittar, Eva Randolph, Leo Tabosa.

Na arte, como na política e na vida, o Brasil passa por um momento delicado de torcidas e patotas que urram a favor e contra, distorcem a realidade e tentam calar o outro com discurso de ódio ou de vitimização. Tapar os ouvidos e os olhos a quem discorda de você é um atestado de fraqueza e autoritarismo. Você pode ou não acreditar que Lula não tem nenhuma influência sobre o PT. A cabeça é sua ainda. A aflição também.