• Valdemar Munaro
  • 16/08/2025
  • Compartilhe:

Epílogos de uma filosofia perversa (I)

 


Valdemar Munaro

 

          Nenhuma atividade intelectual registrada na história, foi tão eficazmente perversa quanto a desenvolvida e arquitetada pelo prussiano Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770 – 1831). Sua raiz e seu desfecho, regados de idealismo até os dentes, tornou-se o útero de todos os historicismos, culturalismos e marxismos contemporâneos.

O enredo racionalista que esse idealismo desenvolve, é sutil e malandro, fabricante de ruínas mentais incomensuráveis. Difícil rastrear alguma edificação científica positiva vinda da filosofia hegeliana. Se algum leitor, porventura, tiver acesso e coragem para manusear pacientemente a principal obra idealista, 'Fenomenologia do Espírito', terá oportunidade de experimentar quanto é possível se baratinar e se enlouquecer. A trama racional que dentro do idealismo se descortina é narcisista e megalomaníaca, um labirinto de raciocínios enleados nas teias do próprio pensamento e das ensimesmadas argumentações.

O ego dialético e político de Hegel é a fonte de onde vem a inspiração visceral que gerou o marxismo. KarL Marx (1818 – 1883), foi um fiel discípulo hegeliano, não negou a dificuldade para entender a 'Fenomenologia do Espírito', mas encontrou um jeito para encará-la: leu-a, estudou-a e meditou-a, pausadamente, diversas vezes (mais de nove) para torná-la bíblia de sua ideologia.

Surpreende observar estudiosos da envergadura de Xavier Zubiri, Charles Taylor e Jean Hyppolite ignorarem as consequências abusivas e alucinantes do hegelianismo. Ocorre que todo hegeliano, dificilmente se reconhecerá como tal e, achando-se no correto, só consegue ver o que quer. Etienne Gilson (1884 – 1978), com propriedade, advertiu aspirantes a filósofos para que se abstivessem de tais idealismos, pois eles jamais levam o protagonista ao encontro do mundo real. Todo filósofo que inicia seu caminho filosófico no e pelo pensamento e não no e pelo ser, não sairá jamais de dentro dele. Permanecerá para sempre idealista e hegeliano.
Hegel é um filósofo iluminista sedutor, um pensador que dividiu ao meio a história da filosofia e da política. Se sua doutrina, de fato, corresponder ao que é a vida real, então o saber humano já concluiu o seu ciclo. Mas, se sua doutrina for um amontoado de jargões e blá blá blás mentais, então, é preciso denunciar a loucura e malversação que essa filosofia causa à ordem intelectual.

O êxito de Hegel, disse o austríaco K. Popper, "marcou o começo da 'era da desonestidade' (como denomina Schopenhauer...), da 'era da irresponsabilidade' (como K. Heiden caracteriza a era do totalitarismo moderno); primeiramente, da irresponsabilidade intelectual, e mais tarde, como uma de suas consequências, da irresponsabilidade moral; o começo de uma nova era controlada pela magia das palavras altissonantes e pela força do jargão".

Hegel conseguiu, com sua retórica, embriagar as mentes de seus leitores com seu suposto 'saber absoluto' e sua divinização do Estado. Seus textos estão repletos de expressões tais como: "O Universal se encontra no Estado... O Estado é a ideia divina tal como existe na terra... Devemos, portanto, adorar o Estado como a manifestação do Divino sobre a terra, e considerar que, se é difícil compreender a Natureza, infinitamente mais árduo será apreender a Essência do Estado... O Estado é a marcha de Deus pelo mundo... O Estado deve ser compreendido como um organismo... Ao Estado completo pertencem, essencialmente, a consciência e o pensamento... O Estado sabe o que quer... O Estado é real; ... a verdadeira realidade é necessária. O que é real é eternamente necessário.... O Estado existe... em razão de si mesmo... O Estado é o que efetivamente existe, a vida moral realizada".

Enquanto ainda residia em Jena, no dia 13 de outubro de 1806, data em que terminou de escrever sua 'Fenomenologia do Espírito', Hegel viu de perto e fisicamente a figura de Napoleão Bonaparte, imponente e poderoso, rompendo as portas da cidade, recolhendo butins e declarando o fim do Sacro Império Germânico.

Hegel 'amava' os ideais da Revolução Francesa, muito embora não apreciasse o jeito de ser dos franceses. Ao ver, impressionado, o general revolucionário em pessoa, enxergou a encarnação histórica do espírito, a personificação do Estado. Na sua intimidade, projetou, simbolicamente, o mesmo ideal para sua Prússia então acuada e encolhida.

Com a publicação de textos teológicos e políticos, Hegel atraiu a atenção de Frederico Guilherme II, rei da Prússia. Recebeu dele o emprego para ser professor de filosofia na recém fundada Universidade de Berlim. Aqui, com solucionados problemas econômicos particulares, exerceu seu melhor ofício: eletrizar alunos e ouvintes com sua dialética e oratória. Até mesmo oficiais de governo acorriam para ouvi-lo.

Arthur Schopenhauer (1788 – 1860), contemporâneo e algoz opositor, referiu-se a Hegel como um inaugurador das desonestidades intelectuais, um charlatão, fomentador de verborreias e obscurantismos. Entre as auréolas professorais que se descortinavam, A. Schopenhauer afirma: "sub entraram-se na filosofia alemã, aos conceitos límpidos e às honestas pesquisas, a 'intuição intelectual' e 'o pensamento absoluto'; impressionar, estontear, mistificar, jogar, com mil truques, pó nos olhos do leitor, tornaram-se o método, e o discurso é guiado pela intenção mais que pela intuição. Por isso, a filosofia, se ainda se pode chamá-la assim, precisou descer e descerá ainda mais até chegar ao último degrau da humilhação com Hegel, criatura ministerial: este, para sufocar uma vez mais a liberdade de pensamento conquistada por Kant, fez da filosofia, filha da razão e futura mãe da verdade, um instrumento, para fins políticos...; mas, para velar a vergonha e atuar a um tempo a máxima estupidificação dos cérebros, estendeu o manto das conversas fiadas mais vazias e da mais absurda verbosidade que jamais se ouviu, ao menos fora do manicômio" (cfr. A liberdade do querer humano).

Como se vê, segundo Schopenhauer, Hegel ensinou a seus pósteros como fazer da ciência e da universidade, capachos de regimes políticos totalitários. A honestidade, virtude essencial da pesquisa e do estudo de quaisquer assuntos, foi jogada às traças para corromper descaradamente as ciências e as instituições.

Na galeria dos falsos profetas elencados por K. Popper, estão Platão, Hegel e Marx. Estes, corroborados por seus asseclas, são, segundo Popper, mentores intelectuais responsáveis pelos arquipélagos e campos de extermínio contemporâneos que mataram milhões de vidas humanas.
Também o dinamarquês, S. Kierkegaard (1813 – 1855), denunciou veementemente a doutrina de Hegel como uma das maiores inimigas do cristianismo. Ao se referir a Cristo, Hegel o considera apenas como uma feliz junção do divino com o humano na história e não como o Filho de Deus Encarnado.

Ainda, segundo Kierkegaard, Hegel se faz inimigo da subjetividade humana por promover uma filosofia que despreza tudo o que pertence à vida singular e particular das pessoas. No entanto, conforme Kierkegaard, a verdade se revela sempre essencialmente subjetiva e individual. Não são as multidões que sofrem ou morrem, mas os indivíduos singularmente existentes.

Antissemita e, por fim, eugenista e racista, Hegel tratou com cinismo e desdém a história judaica, um povo bíblico, segundo ele, trágico e espiritualmente arruinado por ter introjetado de Deus em suas almas. A experiência do dilúvio vivida por Noé, assustou o povo judeu que, ao invés de se dirigir na direção das águas, correu para o deserto a fim de buscar refúgio em montanhas rochosas.

Foi Frederico Hegel quem ensinou Karl Marx, um judeu, a desprezar seu próprio povo de origem. No texto 'A Questão Judaica', o autor do marxismo, sugere que o problema judaico deve ser solucionado pela dissolução do mesmo nas demais culturas.

Hegel, como se conclui, reina vigoroso em nossos dias, seja nas entranhas dos esquerdismos, eugenismos, antissemitismos, socialismos e neonazismos contemporâneos, seja nas teologias libertadoras, seja nas macabras e pervertidas intenções de nossos magistrados, sobretudo do STF, seja na testa de nossas lideranças políticas. Não há marxista que não seja hegeliano e não há hegeliano que não desembarque, cedo ou tarde, no marxismo.

A gravidade maior, porém, da perversidade hegeliana se encontra no interior de seus princípios metafísicos. Mas para não alongar este artigo, convém esperar por outro que a generosidade do Puggina mo permitirá publicar.

 

*        Santa Maria, 14/08/2025

**       O autor, Valdemar Munaro, é professor de Filosofia