(Publicado originalmente em sensoincomum.org)
"O PT nunca foi de esquerda" - A esquerda, agora, tenta atribuir à direita os resultados catastróficos de suas ideias e práticas.
As eleições municipais de 2016 no Brasil sinalizaram um evidente enfraquecimento da esquerda. Significativo quanto a isso foi o colapso eleitoral do PT, que, no segundo turno, foi derrotado em todas as capitais onde disputava prefeitura, inclusive na região que foi o berço do partido – o ABC paulista.
Diante da perda de poder, e quebrada a hegemonia com a qual se acostumara desde os anos 1960 (como já assinalara à época Roberto Schwarz), a esquerda brasileira, com notável capacidade de resposta, já se articula como no passado em torno de seu esporte predileto: a auto-crítica. Mas que o leitor não se deixe confundir por homonímias. No vocabulário esquerdista, a expressão tem um significado bem específico, distinto daquele, habitual e senso-comum, que envolve noções como arrependimento moral, culpa, peso na consciência etc.
Desprezando aquele conjunto de idéias, expressões do que Trotsky ridicularizou como “catecismo burguês” – enfatizando suas origens cristãs –, a esquerda entrega-se à auto-crítica num único e exclusivo sentido, um sentido, por assim dizer, metodológico, jamais ético. Tudo o que busca avaliar são as razões de sua perda de poder.
Eis o critério orientador da auto-crítica de esquerda: o poder. Ter o seu poder político limitado é a única coisa capaz de revolver o espírito do esquerdista a ponto de nele suscitar um simulacro de indignação moral sincera, ainda que pervertida. Nada poderia exemplificá-lo melhor que as maquiavélicas palavras de Gramsci acerca do moderno príncipe, isto é, o partido de esquerda:
“O moderno príncipe, desenvolvendo-se, subverte todo o sistema de relações intelectuais e morais, na medida em que o seu desenvolvimento significa de fato que cada ato é concebido como útil ou prejudicial, como virtuoso ou criminoso, mas só na medida em que tem como ponto de referência o próprio moderno Príncipe e serve para acentuar o seu poder, ou contrastá-lo”.
É nesse contexto que surgem agora dois movimentos simultâneos e complementares no seio do esquerdismo brasileiro, ambos os quais buscando juntar os cacos com vistas a uma futura retomada do poder.
O primeiro é aquele que poderíamos chamar de ortodoxia petista, representado intelectualmente por nomes como Marilena Chauí, Emir Sader, Renato Janine Ribeiro, André Singer, entre outros. Seu método é reafirmar obstinadamente, a despeito dos fatos, o caráter popular e democrático do projeto petista, cujo fracasso, portanto, deve ser todo posto na conta de uma ‘elite’ (termo que incluiria a maior parte da população brasileira, a oposição, a Polícia Federal, o Ministério Público, o STF e sabe-se lá mais o que) em tese refratária à ascensão social dos mais pobres.
É, em suma, a tese do golpe de 2016, veiculada numa série de novos livros conjunta e emergencialmente editados – o que revela ainda a força da extrema-esquerda no campo da circulação de idéias – com o fito exclusivo de emplacar a delirante narrativa dos vencidos.
O segundo, que poderíamos chamar de reformismo pós-PT, é usualmente representado por apóstatas do petismo (figuras como César Benjamin, Luiz Eduardo Soares, José de Souza Martins, entre outros), e seu argumento central, mais sorrateiro, consiste na afirmação de que o PT nunca foi de esquerda. Segundo essa perspectiva – reforçada recentemente pelo marxista italiano Antonio Negri (ver aqui) –, nunca se é de esquerda o bastante.
Trata-se do apelo à velha estratégia do “deturparam Marx” – pela qual a esquerda mundial procurou justificar os crimes contra a humanidade cometidos por regimes comunistas – ou, na formulação do filósofo Gilles Deleuze, “não há governo de esquerda” (ver aqui). A esquerda estaria sempre em oposição ao poder, não passando de uma idéia bonita, uma virtualidade jamais atualizada. Para quem não deseja assumir a responsabilidade pelas consequências de suas idéias, eis a receita ideal. A esquerda seria sempre pedra, jamais vidraça.
Embora pareçam divergir, os dois movimentos opõem-se apenas na superfície. Encontram-se, no máximo, em oposição dialética. Nos termos de uma clássica definição de György Lukács, dir-se-ia que são “momentos dialético-dinâmicos de um todo que, ele próprio, também é dialético-dinâmico”. Trata-se de uma divisão que apenas impulsiona a esquerda para mais perto de seus objetivos, sendo o primeiro deles, tradicionalmente, o livrar-se do peso de seus fracassos e crimes.
Este texto é uma tentativa retardatária de resposta a um artigo bastante representativo do reformismo pós-PT, publicado já há quase um ano, e pouco notado no campo liberal-conservador. Intitulado “Por que a esquerda tem mais razões do que a direita para ser a favor do impedimento de Dilma e da punição de Lula?”, seu autor é o economista Reinaldo Gonçalves, professor titular da UFRJ.
O artigo de Gonçalves, um dos raros esquerdistas a se manifestar à época favoravelmente ao impeachment de Dilma Rousseff, tem como objetivo purificar a esquerda brasileira, apagando para isso os seus laços de cumplicidade com o falido projeto lulo-petista. A estratégia tem tudo para dar certo, por conta do mau uso que, em geral, a classe falante brasileira faz dos conceitos de “esquerda” e “direita”.
Que o governo do PT não tenha sido de esquerda foi sugerido até mesmo pela experiente jornalista Dora Kramer (ver aqui). E não teria como ser de outro modo: quando se parte de um conceito meramente idealizado de esquerda – e num país como o nosso, carente nas últimas décadas de um pensamento conservador, esse conceito é adotado inclusive por anti-esquerdistas –, torna-se obviamente impossível apreender essa esquerda na realidade política.
De resto, devo dizer que concordo parcialmente com o diagnóstico geral do autor, por sinal muito bem exposto. E também, é claro, com o remédio então sugerido: impeachment da Dilma (já concretizado) e prisão de Lula (estamos todos no aguardo!). Mas, por partir de uma perspectiva intelectual e política diversa, eu não posso endossar a sua razão pragmática, que é fazer com que a esquerda reassuma, como se nada houvera acontecido, o controle das ruas e o monopólio sobre a interpretação dos acontecimentos, que ela recentemente perdeu – e, graças à internet, perdeu feio.
Reinaldo Gonçalves foi filiado ao PT durante 20 anos, tendo rompido com o partido em 2005, dizendo-se cada vez mais arrependido e envergonhado por essa longa filiação. Hoje, apesar de anti-petista, segue sendo um homem de esquerda (um social-democrata tendendo ao socialismo, parece-me).
Eu, que já fui de esquerda (de vertente mais soixante-huitardista que marxista), já há muito deixei de sê-lo. Poderia dizer-me de direita, mas com a condição de ressalvar: uma direita ainda politicamente inexpressiva no Brasil, e que, nos últimos anos apenas, começou a ganhar terreno na esfera cultural, posto que de maneira incipiente. Logo, a distância enunciativa, por assim dizer, entre mim e o autor, deve fatalmente produzir curtos-circuitos classificatórios e enganosas homonímias.
Adotarei aqui a perspectiva de um emergente pensamento neoconservador brasileiro, sem pretensão de representá-lo exaustivamente, é claro. Não falo em nome do conservadorismo nacional como um todo, tampouco ousarei defini-lo de forma precisa. Há gente mais gabaritada para fazê-lo. O que o leitor verá aqui é o meu entendimento particular do conservadorismo, e como ele serve de base para a minha crítica. Longe de encará-lo como uma doutrina passível de ser coerente e sinteticamente exposta, vejo-o mais como um antídoto anti-doutrinário, uma certa disposição do espírito.
Sem querer pregar apenas para convertidos, dirijo-me também a uma eventual esquerda republicana sobrevivente ao colapso do lulo-petismo, uma esquerda imaginária, livre do ranço totalitário e patrimonialista daquele modelo. De boa vontade, tomo o economista Reinaldo Gonçalves por representante metonímico dessa nova esquerda virtual. Mas observo que, apesar de sua manifesta intenção de abertura intelectual e renovação, parece-me que também essa variante da esquerda continua refém de certos vícios adquiridos, os quais, se não corrigidos, tendem a inviabilizar um debate político honesto. Eis o cerne do meu comentário.
Dos procedimentos adotados por Gonçalves com vistas à obtenção de precisão conceitual acerca da dicotomia esquerda versus direita, eu não faria qualquer objeção relevante ao primeiro – “hipóteses simplificadoras”, que circunscrevem a discussão aos limites da democracia capitalista – e terceiro – “tipologia flexível”, que determina como campos políticos a esquerda, a centro-esquerda, o centro, o centro-direita e a direita. Já quanto ao segundo, que o autor denomina “marcadores”, gostaria de pontuar algumas coisas.
Os principais marcadores utilizados pelo autor são o mercado e o Estado. Essas instituições, diz ele, “são fundamentais para se configurar os campos da esquerda e da direita”. Digo eu, no entanto, que essa é uma meia-verdade.
Sim. É fato que a oposição mercado versus Estado define basicamente a divergência entre liberais e esquerdistas (social-democratas e/ou socialistas). O problema começa quando o autor opta por tratar liberais e conservadores como um bloco homogêneo (“direita”), incorrendo num equívoco teórico típico da esquerda, que, de partida, distorce consideravelmente o debate político. O ponto é que a oposição “Estado vs. mercado” não contempla exatamente o campo conservador, para o qual seria preciso inserir aí, no mínimo, dois outros marcadores fundamentais: a família e a comunidade (moral e/ou religiosa).
E então teríamos os conservadores abrindo duas frentes de divergência, uma com a esquerda (Estadovs. família ou comunidade), outra com os liberais (mercado vs. família ou comunidade). É um erro conceitual equacionar conservadorismo com mercado auto-regulado, como propõe o quadro 1 do artigo de Gonçalves:
Porque, para o conservadorismo (e aqui penso sobretudo em sua vertente anglo-americana), o mercado também deve ser, de certa maneira, ‘regulado’. Não, é claro, pelo Estado – que, de acordo com certa filosofia política conservadora (ver, por exemplo, a de Bertrand de Jouvenel), tende ‘naturalmente’ a um temível agigantamento –, mas pelos valores morais e religiosos compartilhados pela comunidade, e sedimentados no seio da família.
E sim, a família aqui é a família monogâmica tradicional. Embora o conservador possa reconhecer a legitimidade (civil, legal, afetiva) dos novos arranjos familiares surgidos nas sociedades contemporâneas, ele repudia o combate ideológico (revolucionário) contra o conceito de família tradicional, que resulta em aberrações politicamente corretas tais como, entre outras, a abolição do Dia dos Pais e do Dia das Mães em algumas escolas contemporâneas. O conservador tem apego à realidade acima das idéias, e repugna-lhe a hipótese de supressão de porções da realidade e de tradições histórico-culturais na base da canetada de algum engenheiro social auto-proclamado progressista.
Os conservadores são, sem dúvida, favoráveis ao capitalismo e à liberdade de mercado. Mas a liberdade não deve ser absoluta, não podendo o capitalismo estar dissociado da consolidação cultural de uma determinada antropologia filosófica, ou concepção de homem, notadamente a judaico-cristã. Sem isso, pensa o conservador, corre-se o risco de descambarmos para as formas mais cruas e selvagens de materialismo e consumismo hedonista, justamente daquele tipo previsto por Marx em sua profecia auto-realizável.
Uma das grandes brigas entre conservadores e ultra-liberais (por vezes chamados “libertários”) é que, para os primeiros, nem tudo tem preço e nem tudo passa pela liberdade individual de escolha. As escolhas dos indivíduos devem basear-se num senso de responsabilidade para com o próximo, sendo inseparáveis de um correto discernimento moral.
Acerca da divergência entre a defesa liberal da “liberdade” e o apreço conservador pela “ordem” (condição, segundo essa filosofia, tanto das liberdades concretas quanto da propriedade privada), recomendo o primeiro capítulo de O Que é Conservadorismo?, do filósofo britânico Roger Scruton, recentemente lançado no Brasil pela É Realizações. O filósofo Olavo de Carvalho também escreveu pelo menos três artigos muito elucidativos sobre o tema (ver aqui, aqui e aqui).
Penso que qualquer conservador endossaria a caracterização jocosa de Gonçalves acerca dos “meninos afoitos da ortodoxia”, isto é, os liberais. Os conservadores, se são fundamentalmente anti-coletivistas, tampouco endossam aquele individualismo de cunho utilitarista quase sempre subjacente ao pensamento liberal. Para o conservador, a liberdade não pode ser um princípio auto-fundante, caso em que degenerar-se-ia no seu exato contrário: a liberdade de escravizar, por exemplo, incluindo a auto-escravização por apetites irrefreados.
A liberdade deve vir temperada com a ordem, não apenas civil e estatal, mas, sobretudo, a ordem interna da alma, conceito tradicional da antropologia filosófica clássica e judaico-cristã, que depois caiu em desuso com a emergência da antropologia filosófica moderna (iluminista, materialista, secularista e imanentista). “A pólis é o homem escrito em letras maiúsculas”, ensina Platão na República (368 c-d), lição que Eric Voegelin, expoente do conservadorismo no século XX, chamou de princípio antropológico. Esse me parece um axioma da filosofia conservadora.
John Adams, segundo presidente americano, e o mais conservador dos “Founding Fathers”, ilustrou-o bem, ao escrever em 1798 sobre a Constituição Americana:
“Não há governos capazes de lidar com paixões humanas desenfreadas, imunes à moralidade e à religião. A avareza, a ambição, o desejo de vingança ou a luxúria poderiam romper as sólidas amarras de nossa Constituição qual uma baleia através de uma rede de pesca. A nossa Constituição foi feita exclusivamente para um povo moral e religioso. Ela é totalmente inadequada para qualquer outro”.
Trocando em miúdos, Adams está dizendo que governos e códigos de leis não são formas puras e autônomas, aplicáveis sobre qualquer “substância” social. O mesmo vale para sistemas econômicos, acrescento eu. Nessa perspectiva, uma comunidade moralmente sã e ordenada, formada por homens maduros e responsáveis (spoudaios, na terminologia de Aristóteles), é a precondição essencial para o bom funcionamento de sistemas políticos e econômicos. Há aí a intuição fundamental de que, aquém da política e do progresso tecnocientífico, existe uma ordem moral permanente e eterna que preside as mudanças sociais.
É o apego fundamental àquela ordem – que Edmund Burke chamava de “o contrato da sociedade eterna”, G. K. Chesterton, de “democracia dos mortos”, e T. S. Eliot, de “estrato pré-político” – que gera o tradicional ceticismo conservador em face da ação política. Não que ele não reconheça a sua importância, assim como a importância crucial da autoridade, mas ele tende a olhar a política de maneira pragmática e circunstancial, jamais doutrinária e fundada sobre princípios abstratos ou declarações grandiloquentes de intenções (“justiça”, “liberdade”, “igualdade”, “um país sem miséria” etc.). Contra a política ideológica, a política conservadora é a política da prudência, para citar o conhecido título de Russell Kirk, um dos maiores conservadores americanos do século XX.
Na famosa definição de Michael Oakeshott:
“Ser conservador é preferir o familiar ao desconhecido, preferir o tentado ao não tentado, o facto ao mistério, o real ao possível, o limitado ao ilimitado, o próximo ao distante, o suficiente ao superabundante, o conveniente ao perfeito, a felicidade presente à utópica. As relações e lealdades familiares serão preferíveis ao fascínio de vínculos mais proveitosos; comprar e expandir será menos importante que conservar, cultivar e desfrutar; a dor da perda será maior que a excitação da novidade ou da promessa. É ser igual ao nosso próprio destino, é viver ao nível dos meios, contentar-se com a necessidade de maior perfeição pessoal como com as circunstâncias que nos rodeiam”.
Portanto, é impossível falar de conservadorismo sem levar em conta a importância da dimensão religiosa para essa filosofia. Nesse sentido, liberais e esquerdistas estão bem mais próximos entre si, ambos herdeiros confessos, mais ou menos orgulhosos, da antropologia filosófica secularista e da filosofia hegeliana da história.
A tradição conservadora, por outro lado, vê nestas antropologia e filosofia da história bases nocivas para a vida política. (O leitor encontrará uma boa exposição crítica da antropologia filosófica secularista, do ponto de vista conservador, no livro O Drama do Humanismo Ateísta, do filósofo jesuíta Henri de Lubac).
Com tudo isso, não pretendo dizer que todo conservador seja, necessariamente, religioso. Há conservadores agnósticos e ateus tanto quanto religiosos. O britânico Theodore Dalrymple, por exemplo, que esteve recentemente no Brasil, é um bom representante do conservadorismo secular. Mas é difícil encontrar conservadores que não atentem para a importância do resgate dos valores clássicos e judaico-cristãos como força cultural e civilizacional. Não só judaico-cristãos, a bem da verdade.
Muitos conservadores dirigiram sua sede de eternidade e transcendência a outros sistemas filosóficos ou religiosos. Sabe-se que o católico T. S. Eliot, por exemplo, explorou a fundo a metafísica hindu e a filosofia budista. Sem falar em toda a tradição perenialista de René Guénon, Ananda Coomaraswamy, Frithjof Schuon ou Julius Evola.
É importante enfatizar que, ao contrário dos liberais e dos esquerdistas, o conservador entende a religião, não como questão meramente privada, mas como uma conquista cultural que deve influir na esfera pública. Isso não se confunde, em hipótese alguma, com negar a laicidade do Estado. Trata-se precisamente do contrário. O conservador crê na separação essencial entre Estado e sociedade civil, e rejeita qualquer mistura entre religião e política, sobretudo aquela que, seguindo a profecia (ou maldição) de Ludwig Feuerbach no século XIX, resultaria na atribuição de um caráter sagrado à ação política.
O conservador afirma, aliás, e com razão, que a separação entre religião e política é uma herança da matriz cultural cristã, virtualmente inaplicável fora dela. A política como a “arte do possível” (sensuRussell Kirk) seria um antídodo para toda sorte de “messianismo político” (sensu Jacob L. Talmon).
Enfim, depois dessa resumida (muitos dirão grosseira) apresentação da direita conservadora, que a análise de Gonçalves, restrita à problemática econômica, não teria como contemplar, gostaria de analisar alguns trechos pontuais de seu artigo que me parecem substancialmente equivocados. Vou numerá-los e comentá-los pontualmente.
1) “A direita rotula o governo do PT como sendo de esquerda porque adota o programa Bolsa Família”.
Não é verdade. Qualquer direitista minimamente letrado sabe aquilo que o próprio autor informa no texto: que programas do tipo “Bolsa-Família” são uma invenção liberal, tendo brotado da cachola de homens como Milton Friedman. Portanto, não é isso que faz com que o PT seja de esquerda. Políticas assistencialistas podem ser – e são – utilizadas por governos de direita, de esquerda e de centro, de maneira mais ou menos eleitoreira, mais ou menos viciosa.
A crítica específica ao Bolsa-Família do PT volta-se ao seu uso escancaradamente – dir-se-ia, grotescamente – eleitoreiro, com emprego de chantagem e ameaça aos beneficiados que não votem no partido, e com uso abusivo da máquina pública nesse mister. Trata-se, sobretudo, de denunciar a ausência de qualquer política estável de melhoria de renda, que pudesse pouco a pouco tornar autônomo o beneficiário de programas sociais.
O PT, contrariando todo o bom-senso, jactou-se do aumento da quantidade de dependentes dos programas, quando um sinal de desenvolvimento do país seria o número de pessoas que já não precisassem deles. “O melhor programa social é um emprego”, bem dizia Ronald Reagan.
Logo, ninguém diz que o PT é de esquerda por causa do Bolsa-Família. O PT é de esquerda por toda a sua cultura política, pelo simbolismo que orienta os seus militantes, pela biografia de seus quadros, as suas alianças objetivas com regimes socialistas etc. Poder-se-ia, enfim, citar inúmeras evidências do esquerdismo do PT, recorrendo sobretudo aos documentos do partido e às idéias defendidas por seus adeptos, mas isso tomaria muito espaço neste artigo. Ademais, o ônus da prova cabe a quem defende a excêntrica tese do não-esquerdismo do PT.
A situação é, de fato, bem diversa daquela descrita por Gonçalves. Foi a esquerda que, agora, com o barco naufragando, decidiu rotular o PT como sendo de “direita”, apenas porque o partido seguiu por um tempo uma agenda relativamente neo-liberal (categoria distorcida e mistificada pela esquerda, como bem explica o diplomata Paulo Roberto de Almeida neste artigo). Por ter governado em conluio com os grandes bancos e as grandes empreiteiras, o PT vem sendo chamado de “direita” pela esquerda não-petista, como se a aliança entre partidos socialistas e banqueiros fosse coisa inédita e intrinsecamente contraditória. Ora, tal contradição só existe nas enciclopédias, dicionários e manuais de auto-convencimento da esquerda.
Quem conhece, entre outros, os trabalhos do historiador britânico Anthony Sutton, em especial os livros The Best Enemy Money Can Buy e Wall Street and the Bolshevik Revolution, sabe que a revolução bolchevique de 1917 foi, em parte, patrocinada por grandes financistas de Wall Street interessados na queda do czar por motivos mercadológicos. Há fortes indícios de que a própria viagem de Trotsky de Nova York até a Rússia tenha sido pessoalmente bancada por Jacob Schiff, do banco Kuhn, Loeb & Co. Em 1911, o cartunista Robert Minor, ele próprio bolchevique, publicou no St. Louis Dispatch um cartoon significativo a esse respeito. Nele, Karl Marx em pessoa, chegando em Wall Street com um livro intitulado “Socialismo” embaixo do braço, é saudado com entusiasmo por financistas tais como John D. Rockefeller, J. P. Morgan, John D. Ryan e George W. Perkins, além de Teddy Roosevelt.
A simbiose, em tese paradoxal, entre o grande capital e o comunismo fora notada também pelo romancista britânico H. G. Wells em seu livro Rússia nas Sombras: “O grande negócio não é de forma alguma antipático ao comunismo. Quanto mais ele cresce, mais se aproxima do coletivismo”.
Um dos sinais mais evidentes disso talvez seja o artigo elogioso que, em 10 de agosto de 1973, David Rockefeller dedicou a Mao Tse-tung no New York Times, dizendo-se particularmente bem impressionado com o “senso de harmonia nacional” e o sucesso da revolução em “não apenas produzir uma administração mais eficiente e dedicada, como também incutir na população um moral elevado e uma comunhão de propósitos” (sic).
O tipo de capitalismo monopolista de Estado praticado pelo PT e os seus “companheiros” foi muito similar ao que vicejava clandestinamente na própria URSS, dando origem efetivamente a duas “classes” distintas: de um lado, a população comum, vítima da catástrofe econômica do sistema e refém da escassez de bens e produtos; de outro, a Nomenklatura, desfrutando de um rico e vasto mercado negro, e consumindo os melhores e mais finos produtos vindos do estrangeiro.
A situação é explicada em detalhes no livro URSS: The Corrupt Society – The Secret World of Soviet Capitalism, de Konstantin Simis. Criou-se na URSS dois mundos paralelos e incomunicáveis: o mundo rico e luxuoso da elite partidária, do governo, dos burocratas e funcionários públicos (e, assim como no Brasil, todos ali queriam ser funcionários públicos!); e o mundo famélico e miserável da população ordinária. Nada era comum aos dois mundos: havia o sabonete da elite dirigente (macio e cremoso) e o sabonete comum (seco e sem espuma); o pente dos burocratas (de matéria nobre e resistente) e o pente do resto (que quebrava em uma semana); o tecido dos apparatchik (finos e importados) e o tecido das demais pessoas (roto e áspero), e assim com toda e qualquer mercadoria.
Aquele tipo de capitalismo oligárquico e concentrado é pura esquerda. Não se trata de nenhuma invenção petista, muito menos de uma guinada à direita. Ele é resultado da própria lógica da esquerda revolucionária: para se distribuir igualmente a riqueza, é preciso um poder gigantesco que se erga acima das classes existentes e, na base da força, tome a riqueza de uma e a transfira para a outra. Esse poder gigantesco concentra-se fatalmente no partido.
Como já explicou Olavo de Carvalho, a “ditadura do proletariado” é, pois, uma impossibilidade prática; o que existe e existiu em todos os regimes socialistas foi a ditadura do partido. Para se manter no poder e realizar o objetivo declarado no início da revolução, o partido precisa concentrá-lo cada vez mais, a fim de vencer as forças contra-revolucionárias (ou “reacionárias”) – em primeiro lugar, as externas; e, num segundo momento, as de dentro do partido, quando chega então o momento da depuração, dos expurgos, dos rituais de auto-humilhação – em suma, a especialidade de Stalin.
Para o exercício do poder – como já explicou, entre outros, Napoleão Bonaparte –, todo partido precisa de três coisas fundamentais: dinheiro, dinheiro e dinheiro. Agora, qual o único sistema econômico no mundo a criar dinheiro? Resposta: o capitalista. Só ele. Não existe economia socialista. Isso é uma contradição em termos. O próprio Lênin reconheceu a impossibilidade prática de uma economia inteiramente estatizada. E Ludwig von Mises, como Gonçalves deve saber melhor que eu, demonstrou-o teoricamente de maneira inapelável na década de 1920. Logo, mesmo na URSS, sempre houve um misto de economia estatal e economia privada. O fato de comunistas se renderem, a contragosto, à imperiosa necessidade de alguma economia de mercado não os transforma automaticamente em “direitistas”.
Logo, o fato de que o PT tenha feito o jogo dos bancos e das empreiteiras não significa nenhuma concessão à direita ou ao liberalismo. Tanto quanto qualquer partido totalitário, o PT precisava de dinheiro para a sua política de aparelhamento e compra de consciências. Ademais, coube a ele, via empréstimos sigilosos do BNDES, o papel de grande financiador dos regimes socialistas e bolivarianos vizinhos, parceiros de Foro de São Paulo.
O partido não podia se dar ao luxo de quebrar o país cedo demais, venezuelanizando-o de saída. Havia todo um esquema continental de poder que cabia ao PT, com o dinheiro tungado do contribuinte brasileiro, bancar. Seria tão absurdo afirmar que, ao seguir o modelo econômico mezzo liberal (que Gonçalves chama de “liberal periférico”), o PT inclinou-se à direita, quanto dizer que Lênin virou direitista ao lançar a sua Nova Política Econômica.
2) “Certamente, os marcos do Lulismo agridem mais os valores e interesses da esquerda do que valores e os interesses da direita”.
Talvez o lulismo agrida parte da esquerda brasileira, mas é preciso não esquecer um pequeno detalhe: o lulismo é de esquerda. Não é justo empurrar esse Mateus para o colo da direita. Quem o pariu que o embale! Não há porque acreditar que ele seja mais nocivo à esquerda do que à direita.
Durante muito tempo, a esquerda amparou o lulopetismo, sendo a direita (digo, uns poucos gatos-pingados auto-identificados como conservadores ou liberais) o único vetor de crítica àquele projeto. Quando teve chance de demonizar os críticos de direita do Lula e do PT, tachando-os de “elitistas”, “preconceituosos”, “racistas contra nordestinos” etc., a esquerda brasileira em peso nunca se vexou de fazê-lo.
Parte dela pode ter rompido com o PT, uns há mais tempo, outros há menos. Mas foi a direita a pioneira no combate frontal ao esquema lulopetista, e, portanto, este continua sendo-lhe mais anátema do que o é para a esquerda. Na luta política, como em tudo o mais, antiguidade é posto. A esquerda deve entrar na fila do anti-petismo. Afinal, como questionaria um grande filósofo popular “Chegou agora e já quer sentar na janelinha?”.
O que a esquerda brasileira anti-petista tenta agora fazer com o PT é o mesmo que a esquerda ocidental pós-soviética tentou fazer com o bolchevismo: limpar-se nas máculas do próprio passado, ou seja, monopolizar oportunistamente a crítica ao petismo. Em La Grande Parade, seu grande livro sobre a estranha sobrevivência da utopia socialista após o fim da URSS, Jean-François Revel descreveu bem a estratégia:
“A esquerda não se equivoca jamais ou, quando muito, se equivoca apenas em relação a si própria, em seu próprio seio, de um modo indigno de ser discutido senão pelos pares que a compõem, jamais sob condições que pudessem levá-la a dar razão, ou mesmo a palavra, aos seus adversários”.
A esquerda no poder nunca é a “verdadeira” esquerda. A “verdadeira” esquerda é sempre aquela que anda virá a assumir o poder. Stálin foi o primeiro grande representante dessa “esquerda falsa” na qual a “esquerda verdadeira” tentou se limpar. E aqui vale lembrar que um esquerdista brasileiro como o Mino Carta já tentou, sem ruborizar, empurrá-lo para a direita. Depois de Stálin, a esquerda gritou: “Agora vai”. E o que veio foi Mao Tse-tung; depois, Fidel, Pol Pot, Ho Chi Minh, Hugo Chávez, todos com o mesmo resultado catastrófico… Hoje é o Lula quem faz as vezes de papel-higiênico, roto e esfarrapado, quando já no horizonte surgem os “novos” candidatos a ícones da “verdadeira” esquerda (Mujica? Bachelet? Pablo Iglesias Turrión? Tsipras? Bernie Sanders? Marcelo Freixo?).
Em resumo, tanto quanto os seus antecessores, Lula também não foi a “verdadeira” esquerda. Porque a “verdadeira” esquerda não se equivoca, não peca, não comete crimes. O equívoco, o pecado e o crime são atributos da “falsa” esquerda – ou seja, a direita. A “verdadeira” esquerda nunca pode ser julgada por parâmetros atuais, porque o seu projeto não está no presente, sendo indefinidamente adiado para um futuro desconhecido. A “verdadeira” esquerda só poderia governar o Paraíso. Cito Revel mais uma vez:
“Segundo essa argumentação, o horror das consequências provaria a excelência do princípio (…) Pois, ao se avaliar os zeladores de um modelo ideal, não são os atos que deveriam servir de critério, mas as intenções. No fundo, o reino do comunismo não é deste mundo, e seu fracasso aqui em baixo é imputado ao mundo, não ao comunismo enquanto conceito”.
A esquerda é como o marido traído: sempre a última a saber. O que Alain Besançon escreveu sobre o comunismo em A Infelicidade do Século vale para a esquerda em geral: “Cada experiência comunista é recomeçada na inocência”. Parte da esquerda nacional pretende agir agora como se nunca vira o Lula mais gordo. Mais um pouco e o homem vira ícone do conservadorismo…
Parece-me que Gonçalves tenta encapsular a crítica dentro do campo da esquerda, deslegitimando previamente toda oposição não-esquerdista ao PT. Ele busca aproximar o PT da direita a fim de isolar uma esquerda pura como portadora única da virtude política. Se é mesmo assim, como vimos, seria a milésima vez na história que a esquerda tenta a mesmíssima estratégia.
Não acho que Gonçalves o tenha feito por maquiavelismo, sequer mesmo intencionalmente, mas por puro vício de raciocínio. Como se sabe, é tradição da esquerda raciocinar dialeticamente, assumindo o controle tanto da tese quando da antítese, com vistas a uma síntese superior. Mas acho sinceramente que, dessa vez, a esquerda terá um pouco mais de dificuldade para impor tal narrativa, pois que já há um número suficiente de opinadores liberais e conservadores para contestá-la e refrescar a memória nacional.
Em política, não existem soluções definitivas e sínteses superiores. A política é um diálogo interminável num mesmo plano, uma dialética sem síntese, por assim dizer, exercício de convivência dos heterogênos e contrários. É um campo de perpétua coetaneidade, sem Aufhebung. A direita brasileira não vai entregar a antítese assim de bandeja ao adversário. Daqui em diante, não convém à esquerda querer superá-la. Será preciso, em vez disso, tolerá-la. Será preciso, enfim, negociar. E não seria essa a essência mesma da dinâmica política dentro de um estado democrático de direito?
3) “O apoio das forças políticas de centro e de direita para essa agenda não é razão para se tentar desqualificar ou rejeitar os protestos pacíficos, populares e democráticos. O argumento de que essa agenda é promovida pelos conservadores ou pela direita é, na melhor das hipóteses, um erro analítico que pode ser um erro histórico. A esquerda deve participar dos protestos”.
Falso. As três grandes manifestações populares de 2015, bem como a de março de 2016, simplesmente a maior da história nacional, foram, sim, promovidas por grupos e pessoas de tendência conservadora e liberal. Eu estive nas quatro ocorridas no Rio de Janeiro, em Copacabana. Conheço alguns dos organizadores e suas referências intelectuais e políticas. Muitos fazem parte dessa “nova direita” que ora começa a ganhar terreno no mercado editorial (basta a ver a lista de mais vendidos de não-ficção para conhecer-lhes os nomes) e na cultura de maneira mais ampla, ameaçando a histórica hegemonia cultural da esquerda. Eu vi in loco os cartazes dos manifestantes, ouvi seus gritos de guerra, senti o clima. As manifestações foram, sem dúvida, para além de anti-petistas, visivelmente anti-esquerdistas.
Convém lembrar que quase toda a esquerda brasileira, incluindo sua parcela mais crítica ao PT, jogou contra as manifestações, justamente por considerá-las de direita, como Gonçalves reconhece. De maneira quase unânime, a esquerda tentou antes de tudo esvaziá-las. Depois, fracassado esse objetivo, a estratégia foi desqualificá-las como coisa de “coxinha”, “elite branca”, “eleitores do Aécio”. Resta mais do que claro que as manifestações não partiram da elite, porque a elite do país (empreiteiras, bancos, Organizações Globo etc.) esteve com Dilma, em favor da “governabilidade”, até os últimos momentos.
As manifestações – como de hábito no mundo contemporâneo – foram coisa da classe média, a mais explorada por aquele capitalismo de compadrio que une o Estado e as mega-empresas. Suas pautas foram claramente conservadoras e liberais – “burguesas”, poder-se-ia dizer: defesa da constituição, dos valores republicanos, da isonomia, da ordem, da família, das cores nacionais, tendo sempre a rede-PT(PT, PCdoB, PSOL, UNE, CUT, MST, MTST, CNBB et caterva) como anátema.
A esquerda, se quisesse, poderia e deveria ter participado dos protestos. Mas, para isso, seria preciso ter a humildade de reconhecer que a sua agenda está desgastada, e que ela deve fazer um exame de consciência verdadeiro, respeitando a natureza das manifestações, sem tentar apropriar-se delas para fins particulares.
Afinal, ao lado dos pedidos de impeachment e da prisão do Lula, havia por todo o país centenas de cartazes com dizeres tais como “Olavo [de Carvalho] tem razão”, “Mais Mises, menos Marx”, “Abaixo o Foro de São Paulo” e “A nossa bandeira jamais será vermelha”. Não se viu nenhum cartaz em que se lesse “Zizek tem razão”, “Vladimir Safatle tem razão”, “Marcelo Freixo tem razão” e, muito menos, “Abaixo o capitalismo!”.
Embora eu desconfie que o seu poder de mobilização popular tenha se esgotado, a esquerda, repito, pode e deve voltar às ruas. Mas, ao longo dos próximos anos, ela terá que aprender a conviver com uma direita política emergente, que não tem qualquer relação com o regime militar, e contra a qual os clichês stalinistas habituais – “fascistas”, “elitistas”, “inimigos do povo” – serão impotentes. É uma direita com gente preparada, que tem lido e estudado muito, e que provavelmente conhece a esquerda mais do que esta conhece a direita. E, sobretudo, formada por intelectuais e aspirantes a intelectuais que desenvolvem suas atividades à margem da universidade, livres, portanto, de seus formalismos e sinecuras. Escrevendo, ademais, num português mais clássico, sem os maneirismos acadêmicos à la“penteadeira de velha” (na feliz expressão do poeta Bruno Tolentino), esses intelectuais da nova direita estão destinados a atingir um público bem mais vasto.
Dos anos 1960 para cá, a intelligentsia de esquerda optou por enfrentar o pensamento de direita mediante a difamação ou o boicote silencioso: isso ocorreu com Gustavo Corção, Roberto Campos, José Guilherme Merquior, Mário Ferreira dos Santos, José Osvaldo de Meira Penna, Nélson Rodrigues, Paulo Francis, Bruno Tolentino, Olavo de Carvalho e até mesmo, em alguma medida, com Gilberto Freyre. Em relação à tradição conservadora européia e americana, a coisa é ainda mais espantosa.
Em uma rápida consulta ao banco de teses da CAPES e do CNPq, eu pude constatar a quase ausência de referências aos maiores expoentes do pensamento conservador mundial: Irving Babbit, Richard M. Weaver, Erik von Kuehnelt-Leddihn, Eric Voegelin, Thomas Sowell, Eugen Rosenstock-Huessy, Theodore Dalrymple, Irving Kristol, John Kekes, Kenneth Minogue, Jean-François Revel, David Horowitz, Roger Kimball, Russell Kirk, Michael Oakeshott, Roger Scruton… Todos esses nomes, ou não constam, ou constam de maneira esporádica nos bancos de dados. É provável que a imensa maioria dos universitários brasileiros contemporâneos nunca tenha sequer ouvido o nome desses autores, quanto mais as suas idéias. Para a esquerda brasileira da Nova República, a “direita” é, em larga medida, uma fantasmagoria, um espantalho, um vetor dos próprios traumas e preconceitos históricos.
Saltará a esquerda brasileira para fora do trem-fantasma? Estará a esquerda pós-PT preparada para abandonar o modelo gramsciano de hegemonia cultural e ocupação de espaços? Estará ela disposta a um debate franco de idéias e propostas para o país, com um adversário real e auto-consciente? Saberá a esquerda nacional compreender a direita como substantivo, não apenas como adjetivo de desqualificação a priori? Abrirá mão a nova esquerda da monopolização das virtudes e da eterna postura acusatória? Aceitará disputar honrosamente com a direita um espaço no coração e nas mentes dos brasileiros?
Seria bom, mas eu duvido. A nova esquerda nacional parece-me familiar, prematuramente senil e cansada, pronta a, ao primeiro sinal de embate com um adversário de carne-e-osso, aconchegar-se no conforto psicológico das categorias políticas de 1968, o ano que nunca termina.
4) “O ponto central é que a esquerda tem muito mais razões para apoiar a agenda popular do que a direita”.
Não é verdade. Como vêm demonstrando pesquisas de opinião recentes, a “agenda popular” no Brasil tende a ser predominantemente conservadora e de direita, sobretudo no que diz respeito a costumes e valores – aborto, legalização das drogas, desarmamento, redução da maioridade penal, novos arranjos familiares, políticas de identidade sexual e de gênero etc. Em quase todos esses temas, a elite cultural de esquerda vai para um lado; a população em geral, para o outro. Com exceção do apego ao Estado forte e ao assistencialismo, a agenda da esquerda está quase sempre em desacordo com a dita “agenda popular”.
A afirmação de que a esquerda tem mais razões para apoiar a “agenda popular” não passa de wishful thinking, talvez auto-lisonjeiro, mas objetivamente equivocado. Se pensamos nos valores do brasileiro médio, especialmente dos mais pobres, é fácil constatar que a esquerda já não tem muito o que lhes dizer.
Grosso modo, a esquerda ama tudo o que o povão odeia (legalização das drogas e do aborto; estatuto do desarmamento; beijo lésbico idoso na novela; manutenção da maioridade penal aos 18 anos; fim do capitalismo, revolução social e Marcha das Vadias; patrulhas politicamente corretas da linguagem; desmilitarização da PM; Canal Futura; comida vegetariana; ciclovias; Tropa de Elite II) e odeia tudo o que o povão ama (religião cristã, em geral; pastores evangélicos, em particular; ordem; família tradicional; “bandido bom é bandido morto”; programa do Datena; piada da bichinha contada pelo Costinha; o Papa; o programa Patrulha da Cidade, da rádio Tupi; churrasco na laje; carros possantes; Tropa de Elite I).
Se a sociedade está relativamente dividida, deveria caber aos intelectuais, como de costume, a responsabilidade de organizar e dar expressão simbólica a essa divisão, para que ela possa fluir, através dos canais legítimos e institucionais do debate público, até desaguar na disputa política formal. Sem radicalismos, sem traumas, sem rupturas revolucionárias. Em suma, à moda conservadora…