(Publicado originalmente em http://spotniks.com/)
O carro de som passa pela rua. O anúncio é estarrecedor.
“Querem dar um golpe no povo”, diz. “Acabar com o Bolsa Família, com o Minha Casa, Minha Vida, com o Prouni, o Pronatec, e várias conquistas sociais. Querem dar um golpe no povo e acabar com o aumento anual do salário mínimo e da aposentadoria. Querem dar um golpe no povo e acabar com o SAMU, o Mais Médicos e as UPAs. Querem dar um golpe no povo e acabar com a distribuição de renda para manter os privilégios dos banqueiros. Somos contra o golpe. Venha, traga a sua família. Sexta-feira, dia 18, às 14 horas, em frente ao Lyceu Paraibano.”
Em pouco tempo, a mensagem chega aos ouvidos de dezenas de milhares de moradores de João Pessoa, na Paraíba. A convocação é clara: há uma tentativa de golpe em curso no país que busca tirar todos os direitos sociais e entregar o poder aos inimigos do povo. A única solução: protestar. E nas ruas.
João Pessoa está longe de ser uma exceção. Logo, a mensagem se espalha às pressas por todos os cantos feito notícia ruim. Do Monte Caburaí ao Chuí, milhares de moradores de algumas das maiores periferias do país são convocados a ir às ruas com o mesmo propósito – lutar contra um golpe iminente que tem como seu grande objetivo derrubar as pessoas mais pobres. O governo nisso tudo? Acusa um clima de ódio no país. E sabe o pior? Ele está certo.
Sim, há um evidente clima de ódio por aqui – e você sabe perfeitamente do que estou falando. Há gente que sai às ruas quase todo dia babando feito cão raivoso, entoando enlouquecidamente palavras de ordem contra a presidente. É só ligar a tv. Eles estão em todas as esquinas, em cada noticiário. Cuspindo, franzindo a testa, suando, cerrando os dentes, vomitando palavrões. Há uma convulsão social em plena atividade, forçando gente comum a sair de suas casas com um único objetivo: protestar contra o governo.
E as ruas estão longe de serem os únicos lugares. Olhe ao seu redor. O clima de ódio está muito provavelmente nesse exato momento em uma das abas do seu navegador, na sua rede social favorita, nos comentários dessa página. Ódio ao governo é provavelmente o novo esporte nacional. E o motivo disso? Se você pensou na oposição, apostou errado. A razão é muito mais próxima da sua vida do que você imagina. E o carro de som paraibano ilustrado acima ajuda a entender como isso se dá.
Há algum tempo, essa vem sendo a grande fórmula mágica do governo: dividir para conquistar. Mas não se engane, essa não é uma tática recente na história. Pelo contrário. Foi usada muito antes de direita e esquerda serem orientações políticas, do imperador romano Julio César (divide et impera) a Napoleão Bonaparte (divide ut regnes). Por aqui, ela se repete. Dividir para conquistar vem sendo a fórmula adotada pelo populismo latino americano há pelo menos dois séculos.
Foi exatamente dessa forma que o atual governo chegou a poder. Fracionando, separando, partindo ao meio, dividindo. Para ele, sempre houve dois caminhos muito claros a seguir, como se todos fôssemos estrelas de uma grande história em quadrinhos. De um lado, os vilões típicos: os coxinhas, a elite branca, gente sectária e ignorante que não gosta de ver gente pobre crescendo na vida. Do outro, os super-heróis de capa: os grandes líderes do partido, o mito de suas cores e suas bandeiras, e a burocracia oficial, construída com o único objetivo de defender os interesses dos mais pobres contra as tratativas malignas dos mais ricos. E foi nesse ponto da história que o governo criou aquilo que ele mesmo acusa – o tal clima de ódio.
Você se lembra da última eleição? Ele estava lá o tempo todo. Aécio era um filhinho de papai, machista, que cheirava cocaína, batia na mulher, arriscava retirar direitos sociais, defendia que os jovens estivessem na cadeia ao invés das escolas, ameaçava a democracia,defendia a escravidão, o genocídio da juventude negra e pregava ódio contra os nordestinos. Marina Silva não deixava por menos – era uma serviçal dos interesses dos banqueiros, tinha desvio de caráter, ameaçava tirar comida da mesa dos mais pobres e acabar com os programas sociais, era simpática à ditadura militar e cumpria um script que logo a transformaria numa versão feminina de Fernando Collor.
Criar uma cultura de ódio contra tudo aquilo que ameaçasse o projeto de poder do Partido dos Trabalhadores assumiu o tom por toda campanha oficial em 2014, e quem passasse pelo seu caminho era logo taxado de anti-povo e inimigo dos mais pobres (mesmo Marina, uma ex-seringueira e empregada doméstica, criada no interior do Acre por uma família humilde e que aprendeu a ler e escrever aos 16 anos).
E isso era escancarado. Rui Costa, o atual governador petista da Bahia, à época da eleição disse que “o antipetismo é a insatisfação da classe média”. Para ele, “o Brasil está vivendo um segundo período de fim da escravidão”, com a derrota de “pessoas [que] veem como um absurdo o porteiro chegar de carro ao trabalho e se incomodam ao ficar atrás de um agricultor ou uma empregada doméstica em uma fila de aeroporto; acham que pobre não pode ter carro, não pode andar de avião, não pode entrar em uma universidade”. Como política é essencialmente identidade de grupo, todo essa lenga-lenga pegou. Afinal, quem se importa com propostas quando a discussão está presa a questões morais como a luta do bem contra o mal e seguir cegamente as ordens de um líder messiânico?
Desta forma, o PT cooptou em seus discursos a narrativa religiosa para angariar a simpatia dos incautos e permanecer no poder. Assim, em suas sentenças sempre foi possível reconhecer dois caminhos antagônicos – de um lado, os grandes profetas milagrosos do partido, guiando o povo à salvação e à compreensão das verdades divinas; de outro, os demônios que os combatiam, condenando todos à danação eterna e obscurecendo o entendimento do homem a respeito da verdade. Não por acaso, a cada vez que uma nova denúncia surgisse, que escancarasse a falibilidade celestial do partido, era logo encarada como uma artimanha demoníaca, uma manipulação astuta daqueles que insurgiam dos porões do inferno para confundir seu sacro dogmatismo – e o diabo (do grego diábolos, aquele que acusa, que intriga, que separa), como pai da mentira, logo assumia diferentes formas: ora como mídia golpista, ora como cacique da oposição, ora como organização de um pretenso movimento neoliberal, ora como direita, ora como classe empresarial.
Para condenar a astúcia dos inimigos, não raramente figuras escrachadas que representavam o arquétipo vilanesco da oposição eram expostas como a representação fidedigna dos que combatiam o governo. Logo, os infiéis que questionavam a santidade oficial eram tratados como cães adestrados para servir aos interesses de organizações profanas como a Rede Globo ou a Veja, Eduardo Cunha, Aécio, e de empresários bonachões ianques de almanaque interessados em sugar cada gota do nosso petróleo. Todos babões mesquinhos condenando o país ao impiedoso Armagedom, manipulando um exército satânico em verde e amarelo. Todos irremediavelmente condenados ao fracasso no juízo final graças à ressurreição do grande líder.
Longe da campanha eleitoral, o nós contra eles permanece mais atual do que nunca. Resumir a insatisfação de milhões de brasileiros a uma mera luta golpista de uma minoria branca e rica, desiludida com a ascensão dos mais pobres, ainda dá o tom do discurso oficial, mesmo na maior crise de popularidade do Planalto na história republicana. Na sexta-feira, na Paulista, Lula disse que o protesto contra o governo pertencia à elite, enquanto a manifestação em sua defesa era obra dos trabalhadores. O que tudo isso alimenta? A inevitável ira de quem é excluído dos discursos oficiais – aquela turma que subitamente se vê acossada como a vilã da história. Com tantas razões para ir às ruas, não se espanta que tanta gente tratada nos últimos anos como inimiga, sobrecarregada com a cizânia repetida incansavelmente nos discursos governistas, proteste agora com tamanho furor.
E os políticos não são os únicos a sofrer com isso. Pelo contrário. Há nesse exato instante uma multidão de intolerantes no país ante o cinismo de uma classe em especial – a artística e “intelectual”, que se esconde atrás de uma pretensa ideia de defesa da democracia pra fazer proselitismo governista. Uma classe que faz campanha em período eleitoral pelo partido, que convoca manifestações em defesa do partido, que aplaude lideranças do partido, que critica duramente oposicionistas do partido e que silencia ante as barbáries cometidas pelo partido, covarde em assumir sua condição partidária, fingindo uma isenção pra inglês ver.
Uma classe que, ante todo maniqueísmo de uma luta do bem contra o mal travada violentamente pelo governo nos últimos anos, que insiste em permanecer de pé, perseguindo e condenando de forma hostil, rebaixando à categoria de anti-povo qualquer um que não reze sua cartilha, fingir despudoradamente sair às ruas para lutar pelo amor e pela paz, contra o “clima de intolerância” que invade as esquinas. Uma classe predatória que toma as ruas de vermelho para manifestar-se em defesa de um governo que não raramente lhe rende dividendos, fingindo apartidarismo num ambiente homogêneo, enquanto questiona a isenção de milhões de pessoas, que saem às ruas livremente para protestar e são inevitavelmente tratadas como golpistas de direita comprometidas com um discurso único de violência.
Agora, o clima de ódio é inevitável, ainda que boa parte das pessoas que provocaram essa situação nos últimos anos finjam desavergonhadamente fazer de conta que nada tem a ver com isso. Como resolver a situação? Sem devoção. O petismo se transformou na maior religião de nosso tempo. É preciso lutar por laicidade, em defesa da racionalidade das instituições do país. Desmantelar o clero de artistas, intelectuais e sindicalistas pelegos – classes sacerdotais que há uma década sobrevivem com o dinheiro dizimático dos pagadores de impostos. Lutar contra o clima inquisidor a que se submeteu o Judiciário, pelo fim da condenação de juízes, investigadores e promotores previamente catalogados como hereges e feiticeiros. E finalmente condenar ao inferno das páginas dos nossos livros de história quem prometeu o céu sem ser divino.