quando ouço falar em revisão da Lei da Anistia, fico enojado. Se ela for revista, minha mãe terá a chance de ver julgados os assassinos de meu pai?
A divulgação do relatório final da Comissão Nacional da Verdade veio à tona no último dia 10 comovendo muitas pessoas, inclusive a presidente da República, Dilma Rousseff. Para minha família e eu, no entanto, a emoção se transformou em um misto de revolta e indignação. Esse documento não dedica um capítulo sequer às pessoas que, como meu pai, foram brutalmente assassinadas por terroristas de esquerda.
Meu pai, Cardênio Jayme Dolce, nasceu em Dom Pedrito (RS), em 1914. Ainda pequeno, mudou-se para Porto Alegre onde fez o Colégio Militar. Na década de 1930, foi morar no Rio de Janeiro, onde serviu na Escola Naval. Saiu da Marinha como aspirante porque não queria prosseguir na carreira militar, seu desejo era ser policial civil.
Foi da Polícia Civil até 1968, quando se aposentou como agente federal de primeira classe, cargo que hoje equivale ao de um delegado da polícia civil. Em 1969, começou a trabalhar como chefe de segurança da Casa de Saúde Dr. Eiras, instituição privada que atendia doentes mentais em Botafogo, no Rio.
Lá trabalhou até 2 de setembro de 1971, quando foi cruel e covardemente morto a tiros de metralhadora disparados por terroristas da ALN (Aliança Libertadora Nacional).
Na época eu tinha 10 anos e meus irmãos, 13, 12 e 8. O grupo terrorista invadiu a clínica onde ele trabalhava para roubar cerca de 100 mil cruzeiros, que seriam pagos aos funcionários. Para realizar o assalto, mataram meu pai e outros dois colegas, Silvino Amancio dos Santos e Demerval Ferreira. O enfermeiro Almir Rodrigues de Morais e o médico foram feridos.
Meus irmãos e eu nos tornamos quatro das 21 crianças que ficaram órfãs de pai depois da chacina promovida pelos terroristas da ALN. Pouco tempo depois do atentado, soubemos pela televisão que havia sido feito um ataque terrorista à Casa de Saúde Dr. Eiras e que meu pai e outros colegas tinham sido baleados. Ou seja, fomos os últimos a saber do atentado.
Depois de 2 de setembro de 1971, nossa rotina se transformou completamente. Meu pai deixou algum patrimônio e uma boa pensão da polícia, mas, apesar disso, minha mãe teve que se desdobrar para sustentar meus três irmãos e eu.
Hoje, aos 79 anos, mamãe continua esperando um pedido de desculpas do Estado.
Minha família nunca entrou na Justiça, pois sabíamos que eram pequenas as chances de haver algum reparo. O dono da Casa de Saúde Dr. Eiras era Leonel Miranda, que tinha sido ministro da Saúde no governo do general Artur da Costa e Silva (1967-1969). Ele prometeu dar amparo às famílias das vítimas.
No final das contas, não fomos amparados por ninguém, nem pela Casa de Saúde Dr. Eiras nem pelo governo militar. Minha família recebeu apenas os direitos trabalhistas do meu pai. Só isso.
Dos terroristas que assassinaram meu pai, dois estão vivos: Sônia Hipólito, servidora da Câmara dos Deputados, e Flávio Augusto Neves Leão Salles, que vive hoje no Pará.
Minha família, apesar de todo o estrago que foi feito, hoje vive em paz. Eu espero apenas que não se faça a revisão da Lei da Anistia, como querem aqueles que defendem os terroristas de esquerda.
Meu pai não era agente da ditadura, não torturou ninguém, não caçou comunistas. Teve o azar de estar no lugar errado, na hora errada. Quando ouço alguém falar em revisão da Lei da Anistia, fico enojado. Se a lei for revista, minha mãe, aos 79 anos, terá a chance de ver julgados os assassinos de meu pai?
Jaime Edmundo Dolce, 53, é comerciante em Varginha (MG)