As gavetas do Congresso Nacional escondem um arsenal de guardados que só aparecem quando as facilidades dos parlamentares são ameaçadas pelo controle dos outros. Quando isso acontece, privilégio vira prerrogativa e controle se transforma em abuso.
Pois bastou que mais de 2 milhões de brasileiros sugerissem projeto com “10 Medidas Anticorrupção”, para que se lhes atravessassem outro com um novo rol de “abusos de autoridade” em substituição à legislação de l965. E cujo destaque - dentre inúmeras “mordaças” distribuídas pelo texto do PL 280/2016 - está no art. 30, que pune a persecução penal, civil ou administrativa “ sem justa causa fundamentada”. Dirão - mas pode haver investigação sem justa causa ?- E se responde – mas quem poderá fazer esse juízo se não o investigador? Mas como o legislador pretende deixar o tipo aberto e indefinido, a intenção de inibir agentes fica por demais evidente. Aqui a possibilidade do cometimento de “crime de hermenêutica”(?), uma novidade, funciona como armadilha a exigir prudência.
Parece claro que o maior legado da Lava-Jato seja uma legislação capaz de transformar o impacto social das suas ações que reprimem a corrupção no limite possível da aplicação de um sistema penal caracterizado pela impunidade, numa força capaz de motivar um conjunto de normas mais aptas à prevenção e à punição da criminalidade que apropria o Estado. Induzindo condutas que prestigiem a ética na política e garantam a consolidação da democracia. Mas é razoável pensar que ela só traçará um círculo virtuoso se assegurar, para o futuro, a progressiva deslegitimação do sistema político-partidário corrupto, e a maior legitimação da iniciativa popular na configuração de um arcabouço legislativo penal e processual penal mais eficaz.
De outra parte, não há negar a necessidade de modernizar a lei que pune abusos de autoridades que apostam na impunidade para exercer o arbítrio, eis que a atual já vai para 51 anos. Mas a sua tramitação em regime de urgência, no momento histórico em que os agentes estatais que ela pretende inibir compõem a seleta minoria que brasileiro ainda não vaia, entra na contramão da conscientização que adquirimos, da necessidade de reformar o Estado a que chegamos. Nele, por temor ao controle, legisladores ainda cometem leis para criminalizar nos outros os abusos a que se acostumou.