TAIS QUAIS SERES HUMANOS
Encerrou-se de modo totalmente exitoso o processo de salvamento dos trabalhadores soterrados na Mina de São José, no deserto chileno do Atacama. Durante os 17 primeiros dias ficaram sem comunicação com a superfície. Quando esta foi estabelecida e chegou o bilhete anunciando que estavam todos bem, o mundo se emocionou, os sinos repicaram no Chile e uma imagem de São Lourenço, rodeada de 32 bandeiras chilenas e uma boliviana, foi instalada num altar no Pátio dos Canhões do Palácio de La Moneda.
A partir de agora, o que se passou naquela cova será objeto de muita investigação na área da saúde física e mental. Não creio que estejamos em terreno de certezas, como colhi de especialistas que pareciam dispor de uma sonda privilegiada para acessar o interior das mentes dos mineiros. Os seres humanos, em situações extremas, não reagem de modo igual. E o conjunto de interações que se estabeleceram entre eles certamente compuseram um mosaico fascinante, que vai render muita informação valiosa.
O que acontece quando, num grupo humano razoavelmente numeroso, a esperança está presa por um fio e o desespero pende de espessa corda? É inevitável que durante tão prolongado convívio com a ideia da morte instalada em horizonte assustadoramente próximo, tenham sido levadas ao limite de cada um as respectivas fortalezas, virtudes e debilidades. Como estas características, quando emergentes, interagiram nas relações? E, principalmente, como, ao fim e ao cabo, operou a virtude da esperança?
Diversas vezes, ao longo destes últimos dois meses, foram traçadas analogias entre a situação dos mineiros e o Ensaio sobre a cegueira, livro de José Saramago. Na obra, o recentemente falecido autor português retrata o caos que se instala num grupo de pessoas em confinamento durante um surto de cegueira. Aos poucos, por não verem o que os demais fazem, por saberem que não são vistos, lutando pela sobrevivência, os personagens de Saramago afloram seus piores sentimentos e retornam à barbárie. Animalizam-se em proporções inimagináveis e se estabelece a tirania dos mais ferozes.
Pois a lição dos mineiros, já se sabe, foi bem outra. Foi humana. Realmente humana. Na fronteira do desespero, permaneceram homens e fizeram emergir algumas das condições indispensáveis ao convívio: liderança, ordem, regras. Ou seja, constituíram uma comunidade e se organizaram para a vida, enquanto aguçavam os ouvidos para o silêncio das rochas aguardando o ruído da sonda que os poderia salvar. Mas a principal contestação que os fatos do Atacama fizeram a Saramago no cotidiano de sua tragédia, dentro e fora do refúgio, foi a lição da fé. Há neles o que mais faltava ao competente português e a seus personagens. Fé. E por isso rezavam. Rezava-se muito, aliás, dentro e fora do refúgio. Assim que estabeleceram contato, os mineiros mandaram descer um crucifixo, uma estatuazinha de São Lourenço e organizaram um santuário dentro da cova. Comportaram-se como seres humanos.
Na última quarta-feira, cada mineiro que renascia do útero rochoso do deserto fornecia ao mundo, também, uma lição sobre o valor da vida humana. Sua felicidade refletia um sofrimento. E seu sofrimento era um dedo em riste contra vilões bem conhecidos. Os que, no lado de fora das minas, desde seus gabinetes, tratam como custo de produção os índices de segurança que concedem aos que vão operar no lado de dentro, e os abortistas que tratam como coisa a vida que não veem. Ambos se encontram na mesma iniquidade.
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* Percival Puggina (65) é arquiteto, empresário, escritor, titular do site www.puggina.org, articulista de Zero Hora e de dezenas de jornais e sites no país, autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia e Pombas e Gaviões.