• Joaquim Ferreira dos Santos
  • 26/02/2009
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O HOMEM-BOTÏ - O Globo

Eu sou o homem-bot? o ?o de camisa social no meio da multid?que se veste toda na ?ma moda das camisetas detonadas e na base do quanto-mais-andrajoso-melhor (1) trata-se de caso perdido, de uma fashion victim ao contr?o. Algu?preso ?tradi?s e desinteressado em saber que todos os outros est?usando camiseta em casamento, congresso da empresa e missa de s?mo dia. Eu sou um erro de concord?ia vestimental, algu?diretamente da era do trema e do colarinho. Um espanto. O ?mo a usar camisa social de bot?com acentua? visual pr?erchcovitch. Abram alas para matar suas curiosidades de como um homem se escondia atr?dos panos do s?lo passado. O cara que n?pegou os c?os, que ainda perde tempo arrega?do as mangas. Ele p?s fraldas da camisa para dentro da cal? acha que ainda h?ma roupa para cada ocasi? Esses velhos, pobres velhos. Sempre querendo causar boa impress? se vestir nos conformes, passar para o pr?o a sensa? de asseio, banho tomado, e que ap?istoriar o guarda-roupa escolheu a melhor camisa para valorizar o evento. Um po?de antiguidades ris?is. Um homem que certamente tamb?cheira a lavanda e cede o lugar ?senhoras no lota?. Fa? fila para a visita?. ?aquele todo engomado, na jaula logo ap? mulher de duas cabe?. Foram-se as lojas Ducal, o tergal. O importante ?asgar a camiseta para mostrar indiferen?e falta de pose. Ningu?se importa com a gravidade dos bot? o sil?io no restaurante, essas conven?s. Pois eu sou O cara, n?na vers?afirmativa da arrog?ia de quem foi escolhido pelos deuses para marcar os grandes gols e instaurar o novo verbo. Eu sou o avesso. Aquele que na ?ma edi? do Fashion Rio atravessou a passarela no sentido norte, enquanto os da camiseta iam para o sul, iam ?mulheres e ?elicidade de uma roupa desencanada, a sensa? do momento. Eu sou a edi? 1950 do Chic da Glorinha Khalil. Aquele que se recusa a trabalhar de camiseta no escrit?, porque ?o tempo em que a gola redonda, a malha de algod?e os b?ps fazendo volume eram coisas a se exibir pelos oper?os na pedreira ao lado de casa. Um homem que n?l? notici?o de moda, que vai contra a corrente e se isola, Dom Casmurro no centen?o de Machado. Eu tirei os acentos do ditongo aberto nos casos parox?nos, mas esqueci de reformar a ortografia da camisa e tirar os bot? Um omisso na luta marcha pela deseleg?ia e a liberdade do comportamento. Oremos todos. As mulheres apedrejam as que usam peles, os homem d?boladas em quem usa bot? Eis-me. Eu j?ui, eu j?ra, eu sou o sepultado no fun?o do jornal de amanh?Aqui jaz o homem de camisa social cheia de bot? Foi enterrado de terno e gravata no mausol?da Casa Jos?ilva. Pediu que em sua l?de escrevessem “S? pessoas superficiais n?ligam para as apar?ias”, frase de Oscar Wilde — outro que morreu profundamente elegante e ex?o. J?e foi o de Neanderthal. Descansa em paz tamb?o das cavernas. Chegou a vez de todos se despedirem do homem de bot? esse sujeito com a fileira de rodelas de pl?ico na divis? do peito, uma linha sem imagina? contempor?a que bloqueia a vibra? dos sentidos. A mo?do escrit?, f?e metal e skate, ri dele todos os dias. O homem-bot?se veste como os pais do s?lo passado e n?percebe. H?ma necessidade visualmente moderna de se apresentar de um jeito nem-a?ara o que possa parecer conformidade e aceita?. Born to be wild, como pedem os rocks — e, leia, est?scrito na camisa de malha de todo mundo. A f?ica de bot?de Benjamin Button pode ganhar o Oscar, mas na vida real sua produ? ?ispens?l. Quase ningu?usa mais. Bot?aprisiona. Acena, de dentro de sua casinha careta, cheia de IPTUs a pagar, com imposi? de ordem, tarefa extra num mundo jovem que tem mais o que fazer. Leva-se um segundo para se vestir uma camiseta. A camisa de bot?n?fica pronta no corpo em menos de dois minutos. Quantas a?s deixou de vender neste tempo, homem da camisa social? O homem-camiseta venceu na encena? de que elegante ?arecer leve e descompromissado com os rigores sociais. No trabalho, na noite, use sempre, rico ou pobre, a mesma surrada camiseta que lhe aprouver. Os outros s?os arrumadinhos, os escondidinhos, pratos ex?os do velho guarda-roupa macho. A camiseta detonada, rabiscada de qualquer incongru?ia sem?ica, ?uem est?andando. Siga-a. Ela ? bicho. Ela pega geral. ?a moda sinalizando de uma vez por todas que quer acabar com essa palavrinha. O importante n??ais parecer vestido corretamente para a ocasi? mas apontar o moleque folgaz?a lhe correr nas veias. Se n?h?uturo, como diziam os punks, muito menos estilo. Rasgar-se. Largar-se ao prazer do vento ateu tocando direto nos poros. Respirar o tempo, eis o esp?to da coisa. Menos roupa, meu bem. Despede-se este que vos fala, cada vez mais raro, o homem da camisa social com bot? aquele que n?entendeu a pressa da nova civiliza? em estar preparada para, num segundo, como sabe o homem-camiseta, ficar nu, de volta aos jardins do para?, pronto para o que der e vier. Ningu?tem tempo para prestar aten? na corre? dos punhos, golas, bolsos, vincos, padronagens, linhos e, principalmente, bot?macamb?s acoplados em casas. Chega de alfaiataria. J?e foram as abotoaduras, os prendedores de gravata, o len?no bolso do palet?s barbatanas fixando o colarinho. Solte-se. Liberte-se. As mo? mais bonitas desta gera? continuam preocupadas em comprar os melhores vestidos para desfilar n?mais ao lado de ternos, n?mais abra?as a colarinhos com barbatanas — mas com o homem de camiseta avacalhada. Ele ganhou a prova do l?r. Compreendeu que ?reciso n?trancar nada e seguir a filosofia do flanelinha. Deixar a pele solta para respirar a liberdade de estar em 2009. Resta ao homem da camisa social retirar-se de cena — a vida elegantemente presa dentro da casinha do bot? __(1) andrajoso - Coberto de andrajos; esfarrapado, esmolambado. * Publicado em O Globo, 9/2/2009. * * Joaquim Ferreira dos Santos (1951), escritor e jornalista carioca. Atualmente ?ronista e colunista do jornal O Globo.