• Percival Puggina
  • 01/05/2010
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O ESTRANHO PAI NOSSO DO VIGÁRIO AYRES BRITTO

Perdoem-me este primeiro parágrafo, obviamente exaustivo, mas eu preciso dele para o que vem depois. O Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, levando a Ajuris (Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul) e outros revisionistas a tiracolo, tomou uma goleada do STF (7 x 2) contra a ideia de reinterpretar a Lei de Anistia. Bom para o país. Bom para a nação. Entre o conhecimento jurídico do Conselho Federal da OAB, que se fez representar na causa pelo mais enrustido dos petistas, o advogado Fabio Konder Comparato, e a farta maioria do STF, eu fico com esta última. Quem leu meu artigo A reinterpretação da lei da anistia, divulgado em 25 de abril, três ou quatro dias antes das sessões em que o STF deliberou sobre a matéria, terá percebido que os sete votos, quando extravasaram o necessário campo do Direito para argumentar nos espaços da Política e da História, seguiram as mesmas e óbvias trilhas que eu havia intuído no plano do bom senso: mais do que esquecimento, anistia é perdão e sua reinterpretação faria muito mal ao país. Até aí nada de mais. Coisa sabida, matéria vencida e de martelo batido. O que me interessa aqui é o voto do ex-candidato a deputado federal pelo Partido dos Trabalhadores, o aveludado ministro Ayres Britto, filho das musas sergipanas. E por que me interessa tanto esse voto? Por uma razão tão simples quanto grave. Pode-se tolerar erro de Direito no voto prolatado por qualquer ministro do STF. Pode-se admitir, igualmente, a má interpretação de fatos em julgamento. Mas não se pode silenciar ante a adoção de uma premissa falsa porque falsas premissas evidenciam intenção de enganar, de iludir, de embair o interlocutor induzindo-o ao erro. E menos ainda se pode usar o Pai Nosso como fundamento para tais ofícios. No entanto, o ministro versejador, depois de afirmar em seu voto que perdão coletivo é falta de memória e vergonha (veremos, mais adiante, o quanto isso também é falso), saiu-se com a afirmação de que quando Cristo fez a belíssima pregação de que devemos perdoar nossos inimigos, o fez no plano individual, no plano pessoal (...) A humanidade tem o dever de odiar seus ofensores (gostou tanto da frase que a repetiu por três vezes!). E mais adiante saiu-se com esta: O hino de todas as igrejas cristãs, que é o Pai Nosso, quando diz perdoai as nossas ofensas assim como nós perdoamos os que nos tem ofendido o fez no plano individual, no plano pessoal. Ora, caro leitor, bem ao contrário do que pretendeu o poeta do ódio aos ofensores, o Pai Nosso é a mais coletiva das orações cristãs. Não há um único eu no Pai Nosso. Em cada um de seus versículos apenas existe o nós. O Pai é nosso; o Reino é para nós; o pão é nosso; o perdão do Pai é para nós e deve ser nosso o perdão aos nossos ofensores; a tentação a ser evitada é nossa e os males de que queremos estar livres, também. Onde ele foi buscar individualismo no Pai Nosso não é nem pode ser matéria de alta indagação. Bem ao contrário, é matéria da mais rasteira constatação: no chão do ódio ideológico e da conveniência política. Por fim, qualquer criança pode entender para onde conduziria uma política que se envergonhasse do perdão coletivo. Para tomar o exemplo mais recente, a Copa do Mundo não estaria sendo realizada na África do Sul. Haveria muito mais sangue e guerras sem quartel nem fim. Viveríamos, ao longo da história, na mais pura e inextinguível selvageria se todas as etnias, nações, povos, religiões e estadistas se mantivessem na trincheira do ódio e da incapacidade de perdoar para onde esse menestrel sergipano do infinito desamor gostaria de levar o Brasil. _____________________ * Percival Puggina (65) é arquiteto, empresário, escritor, titular do site www.puggina.org, articulista de Zero Hora e de dezena de jornais e sites no país, autor de Crônicas contra o totalitarismo e de Cuba, a tragédia da utopia.