O ENVOLTÓRIO DA INCOMPETÊNCIA
Por favor, permitam-me esta rápida e transitória entrada no gramado. Eu sei, eu sei - Ne sutor supra crepidam!. Não vá o sapateiro além das sandálias, teria dito Apeles ao artesão que, chamado a opinar sobre um par de sandálias que estava sendo representado pelo artista, passou a comentar o restante da obra. Então, pedindo licença aos leitores e dispensando a sábia observação de Apeles, lá se vai este sapateiro das coisas triviais da política e da vida nacional aventurar-se, tela acima, nas sutilezas e seriedades do futebol. Afinal, imponho-me o compromisso deste texto semanal e hoje não sinto vontade alguma de pintar sandálias. Azar de quem não goste de futebol.
Eu sempre soube que ele, entre os esportes levados a sério, não só é um dos poucos em que há muita falta de seriedade como, também, é um dos raros onde o pior pode ganhar do melhor. O gramado é potreiro onde a zebra pasta faceira e isso viabiliza o futebol como instrumento para jogo de azar. Único com base no qual se pode fazer uma loteria semanal.
Afirmo-o para fazer ver aos meus leitores que estou a par de que a lógica não escolheu o futebol como seu habitat natural. Mas convenhamos: um país com 16 milhões de habitantes pode montar uma seleção mais competitiva do que um pais com 190 milhões de habitantes, onde toda criança corre atrás de uma bola desde que deixa de engatinhar?
Pela lógica, poucos países (e a Holanda não seria um deles) teriam condições de fazer com uma seleção brasileira o que nossos adversários da última sexta-feira fizeram conosco no segundo tempo da partida em que nos eliminaram da Copa. E sempre seria necessário um dia de zebra solta. Um espasmo de azar. E o caso não foi esse.
Perdoem-me, portanto, os fãs do Dunga, se ele ainda os tem. Mas Dunga é o único responsável específico pela derrota do Brasil. O treinador mandou a lógica para o quinto dos infernos. Faltou-nos em praticamente tudo que era de sua atribuição. Levou para a África Sul atletas que não lhe proporcionavam alternativas suficientes, convocou jogadores bons em fase má, e desprezou outros, em excelente fase, por algo que estranhamente denominou coerência. Coerência no erro nunca foi virtude, como tenho insistentemente afirmado em relação a outras situações no plano da política e da ética. De outra parte, se Dunga é o responsável específico, quem é o responsável genérico? É o culto à individualidade que caracteriza o gosto do brasileiro pelo futebol. Talento ganha aplausos e vence alguns jogos. Mas treino técnico e tático, preparo físico e jogo de equipe conquistam campeonatos.
O Brasil chegou à África do Sul dependendo de seus talentos individuais para ser campeão. Quando os talentos deixaram de ser suficientes a bola simplesmente não tinha como sair redonda da defesa e chegar redonda no ataque. Uma questãozinha fundamental que a Holanda soube resolver. Diante disso, demita-se o Dunga por justíssima causa. Treinador algum é obrigado a ser simpático e humilde. Mas a antipatia e a arrogância costumam ser o envoltório da incompetência.
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* Percival Puggina (65) é arquiteto, empresário, escritor, titular do site www.puggina.org, articulista de Zero Hora e de dezena de jornais e sites no país, autor de Crônicas contra o totalitarismo e de Cuba, a tragédia da utopia.