ELOGIO À IRRESPONSABILIDADE
Recentemente, a Globo News apresentou um programa especial com o objetivo de mostrar - ouvindo especialistas escolhidos a dedo - que a democracia está em risco na Europa devido à adoção dos ajustes fiscais reclamados para a concessão de novos empréstimos aos países endividados. A tese era praticamente a mesma do PT quando na oposição: Não se paga dívida com o sangue do povo, Fora FMI!, etc. e tal. Para entender o contexto é preciso saber que os países da Zona do Euro se comprometem com manter a dívida pública abaixo dos 60% do próprio PIB e que alguns países ultrapassaram, em muito, esse limite. Como gastam, sistematicamente, mais do que arrecadam, não podem pagar o que devem e ainda precisam de novos financiamentos. Pois a tese do programa era de que diante de tal quadro, um ente desprovido de qualquer sentido de generosidade, chamado mercado - capitalista, prepotente e autoritário - exigia a adoção de ajustes rigorosos, que os cidadãos, obviamente, rejeitam. Resultado: governos legítimos estariam caindo sob pressão do mercado, dando origem a um novo totalitarismo sobreposto aos interesses sociais dos povos.
Um verdadeiro elogio à irresponsabilidade. Tudo se passava, na perspectiva dos entrevistados, como se o generoso gasto público com a concessão de aposentadorias precoces, pensões vitalícias às filhas dos servidores falecidos, empreguismo exagerado e corrupção devesse ser mantido pela poupança estrangeira, sem limite de prazo, de montante, nem garantia de devolução. Num malabarismo retórico, a irresponsabilidade fiscal do setor público, a má política dos governos, a demagogia dos benefícios sem fonte de receita definida, se convertiam, na disciplinada telinha que tudo aceita, em atributos essenciais à democracia.
Ora, a Grécia mantém gastos militares, em relação a seu PIB, três vezes maiores do que qualquer outro país da região (deve ser por causa da Guerra do Peloponeso...). Pagava 15 salários aos trabalhadores do país. Estima-se que conviva com uma evasão fiscal da ordem de 30%. Nós, brasileiros, nos consideramos endividados e sentimos a restrição da capacidade de investimento do poder público em função do peso da dívida, notadamente da dívida interna, que já passa dos R$ 2 trilhões. Esse número representa um pouco menos de 60% do PIB previsto para 2011. Pois a dívida grega chegou a algo como 120% do PIB, o país continua precisando de mais e mais financiamento para atender compromissos tão imperiosos quanto o pagamento de seus servidores, e a pressão para que ocorram cortes no gasto público foi julgada e condenada como antidemocrática.
É obvio que as medidas de arrocho não teriam respaldo popular, não seriam aprovadas no plebiscito grego, encontrariam rejeição popular na Itália e não será diferente na Espanha. A situação não é incomum. Governos perdulários criam dois problemas gravíssimos. Primeiro geram dívidas que se tornam impagáveis. Depois distribuem benefícios que são fáceis de conceder e muito difíceis de restringir. Eis por que certos temas não podem ser objeto de consulta popular. Quanto mais a sociedade se torna hedonística, menos os indivíduos cogitam de sacrificar um bem imediato em vista do próprio bem futuro. Por isso fica mais penoso poupar, estudar muito, trabalhar com afinco. Se é assim com os indivíduos, mais grave ainda será quando consideramos a situação deles como cidadãos perante o Estado e o bem comum. É um quase absurdo imaginá-los optando por ônus e restrições.
Esse é o momento de a chefia de Estado tornar visível seu valor institucional e político. Tal figura, que lamentavelmente não temos no Brasil porque a fundimos na pessoa do chefe de governo, cumpriu na Grécia e na Itália o seu papel, cuidando da formação de novos governos comprometidos com as medidas necessárias para superar a crise. E isso é democracia.
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* Percival Puggina (66) é arquiteto, empresário, escritor, titular do site www.puggina.org, articulista de Zero Hora e de dezenas de jornais e sites no país, autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia e Pombas e Gaviões.