• Genaro Faria
  • 26/06/2015
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UBI SOCIETAS IBI JUS

 

Era minha primeira aula do curso de Direito. Meu primeiro dia na universidade. Abriam-se para mim as portas de um novo mundo, por onde eu entrava com o espírito dos conquistadores.

Não, não era com a advocacia que eu sonhava. Meu desejo era ser um arquiteto. Casar com o meu primeiro amor, tão arrebatador. Mas a mãe de minha namorada me considerava um playboy, um rapaz sem futuro. Não “fazia gosto” de mim, como se dizia então.

Premido por essa contingência, eu me inscrevi para o vestibular no curso de Direito. Uma estrada larga em comparação com o caminho estreito da Arquitetura. E conquistaria o respeito de minha eventual futura sogra. Que acabou não sendo.

Eu jamais frequentaria a faculdade de Arquitetura, mas conclui meu curso de Direito. E meu pai montou para mim um escritório de advocacia ricamente mobiliado e com a biblioteca completa de um dos mais famosos advogados do meu estado, recentemente falecido. Convida para sócios alguns de meus colegas, que mais tarde se tornaram juízes, desembargadores. Nenhum deles advogou. Muito menos eu.

Hoje, passado o tempo que lembra uma eternidade, parece que foi ontem. E olhe que eu já viajei de jardineira em estrada de terra e de trem de ferro com locomotiva a vapor. Ontem dentro de mim, mas uma eternidade no que distancia aquele tempo do tempo que agora me parece de outro mundo. De um país que se chamava Brasil.

Ainda não me dei conta de que sou velho. Mas não posso ignorar que eu seja vintage. E bota antigo nisso!
Perdi o fio da meada? Não. Essa digressão veio a propósito do título deste artigo – ubi societas ibi jus.
Com essa expressão latina, escrita a giz pela minha professora de Introdução à Ciência do Direito, eu fiquei sabendo que a lei se examina na sociedade. Ou que é assim para quem adota a doutrina do jusnaturalismo, antítese do juspositivismo.
Foi diante dessa encruzilhada que o meu Brasil ficou tão distante, porque tão estranho àquele que eu conheci. Tendo tomado opção pelo juspositivismo, a ética –código escrito por Deus em nossa consciência – foi sendo revogada até que a sociedade deixou de informar o Direito. Este é que passou a conformá-la segundo as ideias e os interesses daqueles que detêm o poder de legislar, executar o foi legislado e julgar as normas que regulam as relações entre o Estado e a sociedade. Com a evidente e brutal supremacia daquele sobre esta. Ubi jus ibi societas. O intelecto se atribuiu a primazia de insculpir na consciência humana o código da sua conduta social. E da pessoa natural fez um ser artificial que aos poucos vai se agregando a outros até que a humanidade realize a utopia socialista na moldura de um rebanho de robôs a serviço de seus governantes.

Se eu nunca tive vocação para abraçar a ciência do Direito – que Karl Marx condenou como “um instrumento de opressão” entre as classes que compartimentam a sociedade – ao concluir que ele se tornou um instrumento para o Estado subjugar a sociedade eu passei a desprezá-lo nessa metamorfose satânica que rompeu com sua história, que remonta aos primórdios da civilização que sob ele se erigiu.

Sei que preciso me conformar para não morrer como um arquiteto frustrado. E tenho, felizmente, para me consolar, a lembrança de que à época em que seria um estudante de arquitetura meus professores eram, todos eles, discípulos de Bauhaus, Le Corbusier, Niemeyer e outros monstros sagrados que inspiraram gerações a projetar pombais monumentais envoltos em vidro fumê para servirem de residência coletiva, fornos horizontais de concreto com compartimentos refrigerados e iluminados artificialmente para as pessoas trabalharem, um palácio de governo que sugere um palanque modernoso e uma catedral que mais parece um cacho de bananas virado de cabeça pra baixo. E eu não ficaria conhecendo, na Faculdade de Direito, a colega com quem me casaria. Meu último amor. Definitivo. Que se confunde comigo num café com leite matutino, bebido em todos os dias de nossa vida peregrina.

E que me permite, à noite, ser o boêmio de sempre. Quase sempre solitário depois que a Lua dobra o nadir. Que me faça má companhia, este sim, não ela, só o inconformismo com a subversão de uma ciência que, ao invés de nos proteger estabelecendo o equilíbrio dos pratos da balança pelo fiel da Justiça, de olhos vendados para não distinguir ninguém, mas a todos igualar com isenção absoluta.

Segundo o direito positivo, que aqui relegou o direito natural aos rudimentos da ciência jurídica, como a alquimia em relação à química, o impeachment de um presidente não é uma questão política. Porque não pode se examinar na sociedade. Quem pode julgar essa questão legal são os ministros da Justiça. Cumpra-se e se faça cumprir a lei. Revogue-se o povo em contrário.