Décio Antônio Damin
Comovente uma cena comum entre nós leva a reflexões sobre a nossa sociedade. Num dia primeiro do ano, cedo, a maioria ainda dormindo, um homem moço, com braços fortes, queimado de sol, de calção e camiseta corre de uma lixeira à outra, rasgando sacos e deles retirando garrafas plásticas, latas, papéis e outros objetos para carregar num carrinho que quase desaparecia sob uma montanha. Era um carro de duas rodas, com dois varões horizontais paralelos unidos na frente por uma barra transversal. Tal era o peso acumulado que parado se inclinava para trás e os varões apontavam, como lanças, para o céu. O homem move-se com desenvoltura, concentrado, nada desprezando. Depois de tudo ajeitado, posiciona-se entre os varões, pula e alcança a barra transversal e então, com seu peso, equilibra o carro que puxa com grande esforço, arfante, músculos retesados, seguindo até novo achado onde recomeça. Oprimido pelo mundo, não desiste e busca com esforço, com as próprias mãos, retirar do lixo a sobrevivência. Com vontade digna de um deus grego, um exemplo de fortaleza e caráter para ser cantado em versos e que mereceria ser eternizado no bronze é, em sua fragilidade social, um gigante, um centauro, um sobrevivente. Dos restos está, com esforço e perseverança, arrancando seu sustento, e sabe lá de quantos.
Para alguns todas as chances, para outros o lixo! À tamanha disposição, se oportunidade fosse dada, a gratificação seria imensa.
Faz-nos pensar, ao propiciarmos aos nossos todas as oportunidades, insistirmos, brigarmos para que façam bem as coisas, estudem, se esforcem e que nos respondem, às vezes, com indiferença e até desdém.
Um dia li uma opinião clara de que, para resolver os problemas do tráfego, dever-se-ia retirar das ruas as carroças, pois elas o atravancam., mas esqueceu que todavia temos ainda conosco convivendo homens que não atingiram sequer o estágio da tração animal e puxam eles próprios seus pesados carros. Sofisticamente, a opinião esquecia a luta hercúlea que, com meios naturais elementares, mãos e força física, estão travando estes nossos irmãos. Merecem, sim, a nossa admiração e, ao invés de execrá-los, deveríamos fazer esforços para trazê-los ao século XXI em que a tração animal e, mais distante, a humana, seriam apenas uma lembrança. Não basta tirá-los simplesmente das ruas.