Valdemar Munaro
As coisas no Brasil atual, vistas desde a ótica da política e da moralidade, se parecem muito a acontecimentos e personagens já encontrados nas poesias homéricas. Homero (que viveu entre os séculos IX e VIII a. c.), mestre da poesia, embora cego, via com sagacidade muitos segredos da alma humana. Sua obra, pilar da civilização grega e da cultura ocidental, narra mitos e heroísmos que prefiguram parte da saga em que nos metemos. Gerações de sua época conheciam inteiramente aquelas histórias e, mesmo sendo parte do imaginário popular, levavam-nas a sério, memorizando-as. Hesíodo (século VII a. C.), um poeta camponês posterior, declamava aqueles versos aos aldeões para instruí-los na seiva e na tradição das quais eram herdeiros. Prezava, porém, o heroísmo estampado no rosto do lavrador mais do que na força do guerreiro político.
Os poemas conhecidos como 'Odisseia' e 'Ilíada' se tornaram tesouros da literatura e trouxeram até nós uma parte daquele universo helênico. Lamentavelmente, essas obras não mais são conhecidas e amadas como outrora por nossos estudantes pelo fato de pretensos arautos da educação escolar e universitária, enfeitiçados que estão por ideais inovadores e progressistas, semearem desprezo e negação por tudo o que vem do passado. Com efeito, um novo hospedeiro ocupou o lugar da vida intelectual de nossa gente subvertendo o assento que a sabedoria antiga ocupava no reino da ciência na qual se dava primazia à contemplação sobre a ação. Os sábios de outrora não se esforçavam tanto por conhecer o mundo com vistas à sua transformação, mas, antes, para se compreenderem a si mesmos e se orientarem no curso da vida.
Naqueles homéricos poemas encontramos notas de humanismo e fina psicologia. Ulisses, protagonista da Odisseia, é herói sobrevivente da guerra de Troia, um exímio estrategista e enganador. A engenhoca do 'cavalo de Troia' foi sua inspiração. Contudo, Ulisses não enganou só troianos, enganou também o gigante da caverna, pondo-se sob o ventre das ovelhas, enganou sereias sedutoras tapando ouvidos para não as escutar, enganou rochedos mortais ao navegar equidistantes correntes. Sua saga é um heroísmo ante agruras terrestres e marítimas. Seu aprendizado lhe vem mais da lida com a natureza do que das batalhas políticas. A terra e o mar, em muitos casos, são para os humanos obstáculos superiores às lutas cívicas. O convívio de Ulisses com o meio ambiente nu e cru, ensina que a natureza, como diz Chesterton, nem sempre é mãe; por vezes é também madrasta cruel. Do mesmo modo como louvores a revoluções sangrentas em geral são feitos por homens que nunca delas participaram, assim também amores e afetos que normalmente dispensamos à mansa e bela 'natureza' (romantizada, como exemplo, pela floresta amazônica), quase sempre, nascem de mentes e corações situados em recintos aquecidos e varandados.
Admiro Odisseia, mas, permitam-me sublinhar 'Ilíada', a poesia épica troiana, de natureza fratricida. Encontramos ali o eco dos devastadores conflitos de povos gregos entre si. Ilíada é a poesia das cidades irmãs em litígio: está implícito nela o tema da guerra entre os próprios gregos, o símbolo de todos os atritos humanos. É claro que também a guerra contra os persas, registrada por Heródoto (484 - 430 a. C.), tem matizes de heroísmo e desgraça, mas o conflito dos gregos entre si, narrado inclusive por Tucídides (460 - 400 a. C.), na sua Peloponeso, é mais lamentável e mais triste porque é registro de guerras entre irmãos. Enfim, batalhas contra estranhos e batalhas entre irmãos terminam sendo faces de um mesmo e degradado convívio humano.
Em Troia, os personagens falam mesma língua, bebem mesma fonte, rezam mesmos deuses, manducam mesmo pão, mas a intriga termina em sangue de 'irmãos' derramado por 'irmãos'. Por que essa insensatez no interior das nações? Erasmo de Roterdã no seu 'Elogio' (1509), diz satiricamente que a loucura é a fonte e a causa das nossas invenções, da nossa arte, dos nossos amores e das nossas guerras. Ironias à parte, sabemos que nenhuma insensatez faz bem aos homens, muito embora haja os que a defendam e a promovam. Em jardins secretos de lacaios de ocasião crescem árvores mazelentas nutridas de perversas intenções que oportunisticamente se revelam. No sacrário humano parece haver uma misteriosa e maliciosa genética que a própria psicanálise (e suas doutrinas irmãs) não consegue visualizar, nem curar.
A guerra de Troia se assemelha a uma outra denominada Babel e descrita pela Bíblia. Também aqui se veem homens entoando mesmas canções, palrando mesmas línguas, bebendo mesmos vinhos, orando mesmo Deus. São gentes de igual estirpe e cultura, mas não se entendem. Vê-se que o problema não está na língua. Em Pentecostes, antítese de Babel, os homens falam línguas diversas e se entendem. Em Babel, antítese de Pentecostes, falam mesma língua, mas não se entendem. Nesta, fraternidades se tornam babilônia, naquela, babilônias se tornam fraternidades. O espírito que nutre e sustenta ambas as 'cidades' tem fontes distintas: numa, se cultiva o inferno, noutra, o paraíso. O diabólico, o espírito da divisão, é craque em encrencas. Seus frutos são premissas de babilônias que nos dividem e nos amedrontam.
O assunto se derramou por várias esferas, sobretudo para o campo das doutrinas e das relações humanas. Maquiavel (1469 – 1527), por exemplo, via a sociedade como junção de 'raposas e leões', por isso insistia numa vida política baseada na desconfiança, na malandragem, na tirania, no medo. O príncipe, segundo ele, não deve somente ser obedecido. Para subsistir, deve também ser temido. Thomas Hobbes (1588 – 1679) seguiu o mesmo caminho ao formular os fundamentos do seu 'Leviatã'. Depois vieram os revolucionários franceses impregnados de 'iluminismo' e terror. Charles Darwin (1882), racista, não perdeu por esperar: sua teoria afirma a lei da luta pela vida e da seleção natural pela qual o forte subjuga o fraco. Finalmente, quando o pai do marxismo, Karl Marx (1883), veio para nos ensinar o comunismo, a cama já estava arrumada para deitar nela a prática revolucionária, o ressentimento, a revolta, a quebradeira moral, o conflito histórico e social. Por isso, marxistas gostam de conflitos e o promovem. Foi de um famoso filósofo alemão, G. W. F. Hegel (1830), que Marx aprendeu quase tudo o que ensinou sobre luta e conflitos políticos. De fato, a filosofia de Hegel acreditou poder explicar tudo por meio de um princípio que recebeu o nome de dialética, mas que, na prática significa conflitualidade. É natural, portanto, que filosofias hegelianas e marxistas acariciem e alimentem conflitos e nunca a paz.
Ora, se a malícia e a corrupção medram e nutrem a alma do homem, não há língua nem atitude decorrentes dela que estejam livres dessa desgraça. O espírito de Babel se espraiou na seara política e em toda comunidade humana, especialmente no Brasil. Babilônia é nossa peste. Dá um nó na garganta ver o comportamento de muitos de nossos políticos e de nossas lideranças. É só conferir a atual CPI da Covid (conduzida pelo G7) de nossos senadores totalmente aninhados na sujeira e na corrupção (como Omar Aziz e Renan Calheiros). Definitivamente, esse pessoal não ama, nem respeita o Brasil e os brasileiros. Seguem institivamente instintos de poder e de conflito. Nas entranhas de muitas de nossas lideranças reside o germe que achincalha a comunhão, corrói a vida social e familiar, a justiça, a fraternidade, o amor. Primeiro rasgam a túnica inteiriça e depois se apresentam como seus costureiros. Primeiro instauram a quebradeira em todo tecido social (como exatamente fizeram e fazem os atuais governantes comunistas cubanos e o PT com toda sua turma) para depois se professarem arautos da paz e restauradores da democracia e da concórdia. Somos mesmo um povo sob lideranças carunchadas e enganadoras.
Dostoievski (1881) desconfiava que o inferno podia ser ou uma espécie de 'fraternidade' odiosa ou uma absoluta solidão. Estamos no caminho. O que é pior: uma convivência fundada sobre o ódio ou uma impossível convivência fundada sobre a ausência de pessoas para se amar? O que mais mata: um lar sem amor ou um amor sem lar? No fim, dá no mesmo: o amor que falta à solidão é o mesmo que falta às insuportáveis convivências. Até mesmo, no seio da nossa Igreja, aquela que deveria ser mãe zelosa de comunhão e de moralidade, também reina contaminações: o trigo travestiu-se de joio e o joio de trigo. Talvez, por isso, no coração de muitos cresce um sentimento de desamparo e solidão.
Voltemos à Ilíada. Nela, dois ilustres heróis, Aquiles e Heitor, indicam as coordenadas das intenções que motivam os que na vida devem lutar. Esses heróis são da mesma estirpe grega e urbana, mas o escopo de suas lutas, em cada um, é distinto. Em Aquiles há narcisismo e vaidade. Seu ego, coisa inusitada, tem o incenso da própria mãe. Como assim!? Mãe incentivando o próprio filho à guerra?! Sim, pois o que interessa nele não é a guerra em si, nem a pátria a ser defendida, mas é o peito inchado de narcisismo. Aquiles é o 'cara' da civilização helênica, o guerreiro por excelência, aquele que derruba adversários. A vaidade o conduz à guerra e seu gozo é ver inimigos se contorcendo. Não ama porque é mercenário e é mercenário porque não ama. Poderia lutar inclusive ao lado dos troianos se estes tivessem acariciado sua imagem e seu orgulho pessoal. Sua força guerreira não visa beneficiar nenhum povo, nenhuma cidade, mas só a si mesmo.
Heitor, ao invés, tem nobreza de alma. Vai à guerra para salvar sua gente, defender sua terra, sua casa, sua família. A guerra em Heitor tem um naco de justiça e honradez. Espelha as guerras que devemos travar quando precisamos conservar a retidão na nossa alma e a nossa alma na retidão. Por isso, nem todas as guerras são injustas. Muitas delas são necessárias e inevitáveis. Os grandes S. Agostinho e S. Tomás justificavam as guerras de defesas. Sabiam que não há vida honesta e justa sem batalhas e todo aquele que, de coração, amar o bem e a verdade sofrerá represálias, perseguições e sentirá frieza e força dos ventos contrários. Escolher o bem é também rejeitar e resistir ao mal.
Aquiles e Heitor não são apenas personagens míticos, são também o rosto e a personalidade de cada ser humano. Se nossa vida política se tornou um ninho de serpentes, com maior razão heitores devem despertar e se levantar. Nossa nação não pode ser refém de personagens aquileanos infiltrados no Congresso Nacional, no Judiciário e nos Estados. Os resíduos troianos estão à vista. Aquileanos estão a postos para abocanhar de novo o ubre em que mamavam. As eleições do próximo ano impõem-nos, portanto, uma urgente obrigação moral: escolhermos heitores ao invés de narcisistas aquileanos para nos legislar e nos governar. Cabe a todos nós discernirmos e julgarmos os que agem como Aquiles e os que agem como Heitor. Não há nem haverá uma terceira via. A luta será entre Aquiles e Heitor. Todo nosso apoio, portanto, neste momento, deve ser dado ao nosso presidente Jair M. Bolsonaro que já desceu ao campo de batalha e demonstrou ter alma e elmo de Heitor.
* O autor é professor de Filosofia na UNIFRA.
Santa Maria, 23/07/2021