Ao longo de sua história independente, o Brasil efetivou numerosas alterações em seu sistema políticoinstitucional, algumas muito positivas, outras nem tanto. Algumas em resposta a desafios bem definidos, outras na esteira de um “clima” reformista vagamente delineado.
Entre as reformas positivas, eu começaria por mencionar a própria Constituição de 1824, muitas vezes debatida em tom de chacota, mas que teve o mérito, nem mais nem menos, de encaminhar nossa evolução política na direção do moderno Estado constitucional, devendo-se também observar que os órgãos legislativos e judiciários que tal evolução pressupõe foram imediatamente instalados. Outra alteração notável foi a de 1840, que muitos historiadores, incorrendo mais uma vez no pecado do anacronismo, denominam “o golpe da maioridade”. Ao autorizar a ascensão ao trono de um adolescente de 15 anos, o referido “golpe” teve o condão de encerrar quase instantaneamente a onda de rebeliões e pequenas guerras civis regionais que se configurara durante o período regencial (18311840), cujo prosseguimento poderia pôr em risco nossa unidade territorial.
Entre as mudanças negativas, a pior foi, sem dúvida, o autogolpe desfechado por Getúlio Vargas no dia 10 de novembro de 1937, o famigerado Estado Novo, a única vez em que o regime representativo e os mecanismos institucionais que o legitimam foram inteiramente erradicados em nossa história.
No passado recente, a tentativa mais ambiciosa foi a do Congresso Constituinte de 19871988, precedida pelos estudos levados a cabo durante quase um ano pela Comissão Afonso Arinos (Comissão Provisória de Estudos Constitucionais), nomeada pelo presidente José Sarney. Tratava-se, na ocasião, de reorganizar constitucionalmente o País após 21 anos de governos militares, convocando toda a sociedade a participar do processo a fim de lhe conferir o máximo possível de legitimidade. Natural, portanto, que todo o leque de questões pertinentes fosse aberto, dando ensejo a um debate público que equivalia praticamente a um reexame de toda a experiência histórica iniciada em 1824. Do ponto de vista institucional, no entanto, uma preocupação – a da estabilidade do novo regime democrático – destacava-se claramente sobre as demais, e nem poderia ser diferente, uma vez que Brasil, Argentina e Chile mal saíam de interregnos autoritários. E que outras experiências desse tipo se insinuavam no cenário latino-americano – poucos anos depois, o Peru sucumbiria ao fujimorismo e a Venezuela, ao chavismo.
Esta breve evocação das preocupações daquela época se afigura imperativa neste momento, dado o sentimento generalizado de que cedo ou tarde teremos de encarar novamente o desafio da reforma política. Dados, também, os cenários doméstico e internacional que ora se descortinam, com referências quase diárias a um suposto “fim da democracia representativa” e com tendências de fato preocupantes em diversos países. Nos Estados Unidos, por exemplo, a disputa entre Donald Trump e Hilary Clinton configurou-se como um enfrentamento raivoso, bem o oposto da garantia que os estudiosos políticos daquele país sempre nos deram: a de que a eleição presidencial sempre favoreceria a moderação e a convergência, forçando os radicais e furibundos a se contentarem com o apoio de faixas minoritárias da sociedade.
No quadro atual, é indispensável considerar que uma reforma política que se preze deve levar em conta pelo menos três critérios, ou perspectivas, examinando meticulosamente as interligações e eventuais contradições que entre eles se estabelecem. Refiro-me, em primeiro lugar, ao já referido critério da estabilidade, vale dizer, ao imperativo de reduzir ao mínimo possível as chances de ruptura da ordem constitucional e a consequente imposição de fórmulas ditatoriais.
Segundo, o critério da governabilidade, vale dizer, o da eficácia do sistema político em seu conjunto na produção das políticas públicas e, principalmente, na efetivação de reformas estruturais, que de tempos em tempos se faz necessária.
Terceiro, o critério da representatividade, da identificação ou não do eleitorado com seus representantes, questão que remete invariavelmente ao debate sobre o voto distrital e à desproporcionalidade entre as populações de certos Estados e as respectivas bancadas na Câmara dos Deputados (agravada pela representação igual de três parlamentares por Estado no Senado Federal).
Retrocessos ditatoriais geralmente decorrem de uma combinação de fatores, como crises econômicas, acirramento do embate entre partidos ou grupos ideológicos, personalidades destemperadas ocupando posições elevadas na estrutura de poder e, por último, mas não menos importante, sistemas de governo propícios à instabilidade, como o é o sistema presidencial.
Nesse aspecto, a situação brasileira atual é profundamente diferente daquela que vivenciamos nos anos 80 do século passado. Hoje, o que nos preocupa não é apenas a memória de retrocessos passados, mas a alta probabilidade de que possamos sucumbir a situações ainda mais graves num futuro não muito distante. Somos, como é de conhecimento geral, um país enredado na “armadilha do baixo crescimento”, incapaz de elevar sua renda anual por habitante a um nível compatível com a assustadora acumulação de problemas na sociedade. Direta ou indiretamente, tudo isso tem que ver com a governabilidade, vale dizer, com a constatação de que o sistema político tem grande parte de seu potencial travado por acoplamentos disfuncionais de mecanismos institucionais específicos.
Nesse aspecto, como ninguém ignora, o Brasil é um caso de alto risco, na medida em que associa o regime presidencial, com sua característica rigidez, a um sistema de partidos que é sabidamente o mais fragmentado do mundo.
O Brasil é um caso de alto risco, por associar o regime presidencial a partidos fragmentados.
*Publicado originalmente no Estadão de 11/09