Comecei a trabalhar muito cedo, aos nove anos, numa padaria de um lugarejo. Acordava às três e meia da madrugada, preparava o tempero para a massa, ajudava a misturá-la num cocho e a tocar um pesado cilindro de madeira. À tarde, estudava. Quando voltava da escola, ajudava o padeiro a serrar os toros de madeira que serviriam de lenha para o forno no dia seguinte. Não ganhava um único tostão, apenas uns pães, muitas vezes dormidos. Às vezes, um pouco de trigo e açúcar para o mingau do meu pai, atacado pela terrível e constrangedora tuberculose. Com minha mãe, também plantei milho e feijão, à meia, no terreno de um vizinho. O dono da padaria era um homem pouco sensível e um tanto sovina, mas nunca o odiei. Sobrevivi. Estudei e trabalhei, tudo ao mesmo tempo, durante toda a minha vida, do primário à pós-graduação.
Numa loja em que trabalhava na adolescência, éramos visitados por dois homossexuais muito divertidos. Meu irmão e eu convivíamos bem com eles, sem problemas. Nossos fregueses também. Uma ou outra piadinha não atrapalhavam essa boa convivência. Um deles me gozava porque eu era magro ao extremo e tinha o rosto cheio de espinhas. Nenhum problema mais sério, nenhum ódio, convivência normal.
Quando crianças, os melhores amigos dos meus filhos superbranquelos, com olhos verdíssimos e translúcidos, eram pretos retintos. Brincavam, jogavam bola e rolavam na poeira. Do lado direito, pretos; do lado esquerdo, outros branquelos como meus filhos, que se misturavam, na rua, em casa, em todo lugar. Ao mudarmos para o meu bairro atual, meus branquelos, já na pré-adolescência, arranjaram um novo casal de amigos. Para variar, pretos também, com quem mantêm amizade até hoje. Sem problemas, sem ódio.
Como aluno e, depois, como professor, convivi com todo tipo de colegas. Só como professor, foram 33 anos. Alunos gays, colegas gays, nenhum problema, nenhum desrespeito. Uma gozação, uma menção à opção sexual aqui ou ali, claro, mas nada diferente das piadinhas com os gordinhos, os narigudos, os cabeçudos, os orelhudos ou os espinhentos como eu. O mesmo acontece com os gays da minha rua com os quais convivo há 25 anos. Um deles já cortou o cabelo dos meus filhos várias vezes e, inclusive, o meu. Convivência normal, sem problemas. Não os ouço reclamar de violência mais do eu e os demais moradores.
Nos últimos anos, entretanto, parece que essa boa convivência, entre patrões e empregados, negros e brancos, héteros e homos, sofreu um abalo. Há disseminação de rancores e estremecimento de amizades. Alguém poderia dizer que estou dourando a pílula ou vivendo em outro mundo. Não, mil vezes não! Não estou querendo negar que exista discriminação ou preconceito. Isso sempre houve e sempre haverá. A questão é outra, e as perguntas são: Em que nível ou grau? Por que a coisa é tão seletiva, privilegiando certos grupos? Quais são os números exatos? Quais as estatísticas reais e confiáveis? Quem as manipula?
Olhe para a sua família. Estenda o seu olhar para a sua rua, seu bairro, sua cidade, seu Estado, seu País. Qual a verdade? Qual a realidade? Quais os números reais? Pare, pense e pergunte: Quem nos botou pra brigar? Quem provocou essa guerra? A quem ela interessa?
Eu tenho as minhas respostas e posso dá-las a qualquer instante, sem paixão, com a consciência tranquila diante de Deus e dos homens, pressão doze por oito e setenta batimentos cardíacos por minuto. Quais são as suas?