Há mais de três décadas os economistas de boa formação vêm alertando para a necessidade de uma faxina no setor público, para reformas estruturais com vistas a diminuir gastos da União, estados e municípios. Por volta dos anos 80 eles eram poucos, lembrando São João Batista pregando em um deserto de ideias e eram tachados de radicais, conservadores, antiprogressistas, elitistas e outros adjetivos do gênero. Depois, seu número foi aumentando lentamente, até que hoje - em parte, infelizmente, devido aos estragos provocados pelo lockdown, que esbugalharam o estado lamentável das contas do governo federal e dos entes federativos -, essa necessidade é consensual na profissão e só aqueles economistas com parafusos frouxos em suas cabeças, os ultraprogressistas, ainda têm o desplante, ou melhor, a cara de pau de negar a urgência de mexer nas estruturas obscuras do Leviatã.
No entanto, apesar dessa necessidade ser tão óbvia e não obstante a vitória nas urnas, em nível federal, de um programa marcantemente liberal, que enfatizava a importância das reformas, decorrida quase a metade do mandato presidencial e com o mesmo ministro da Economia, os progressos obtidos foram tímidos, aliás, bastante tímidos, em relação ao que se esperava, tanto por parte dos eleitores, como por parte da equipe econômica e do próprio presidente: é verdade que a “lei da liberdade econômica” foi uma realização positiva, mas os cortes de despesas públicas continuam resistindo com valentia, poucas empresas estatais foram privatizadas, a reforma da previdência que os políticos deixaram vingar foi bem acanhada, a tributária jogada para frente, a administrativa empacada, etc.
Por que tantas dificuldades para fazer o que é um consenso, por que essa incrível rebeldia ao que é gritante? Há vários motivos para essa resistência à faxina no setor público, mas desejo apontar para três, que suponho sejam os mais importantes.
A primeira dificuldade é o velho patrimonialismo, essa praga enraizada em nossa cultura, que consiste na criminosa e deliberada ausência de distinções entre os limites do público e do privado, em que políticos e outros grupos de interesses sentem-se donos de toda a sociedade e, portanto, dos orçamentos dos três poderes em todos os níveis de governo. O patrimonialismo é um devorador contumaz de orçamentos, um acinte a quem é obrigado a pagar tributos para sustentá-lo e o fato é que sem mudanças culturais profundas, continua e vai continuar reinando na terra de Santa Cruz.
O segundo motivo é contábil, aritmético: cerca de 95% das despesas da União são obrigatórias, o que impõe ao governo federal uma margem de menos de 5% para gastar conforme suas prioridades. O orçamento federal brasileiro talvez seja o mais engessado do mundo e os dos 27 estados e 5.578 executam a mesma música. Trata-se de um processo de engessamento deletério e intenso, que a Constituição 1988 vem agravando com a multiplicação de despesas obrigatórias, de transferências constitucionais, de regras de indexação de despesas, de obrigatoriedade de aplicação mínima de recursos em alguns setores e de criação de receitas vinculadas a determinados gastos, o que, além de limitar as ações dos executivos, impede a realocação de recursos para cumprimento de metas fiscais. Nesse verdadeiro furor “orçamentívoro”, enquanto os gastos obrigatórios – que incluem Previdência, educação, saúde e folha de pagamento – apresentam aumentos contínuos, os ditos discricionários, aqueles de livre escolha, esmirram a olhos vistos. Só para termos uma ideia, apenas as despesas de custeio para manter o funcionamento da máquina pública correspondem a mais da metade da margem fiscal e não é preciso enfatizar como é difícil cortar sistemática e sucessivamente gastos com salários, energia elétrica, segurança e limpeza.
Por fim, a terceira dificuldade para as reformas é de natureza ideológica, porque aqui em Santa Cruz ainda existe uma seita de fanáticos adoradores do estado onipotente e interventor, que lhe prestam culto em um misto de doutrinação gramsciana, de ignorância, de ingenuidade e, principalmente, de interesses políticos e corporativos. E quem se atreve, por exemplo, a cortar os inúmeros privilégios contemplados aos funcionários do Judiciário e do Congresso? A influência ideológica desse terceiro óbice é muito forte na mídia, nas escolas e universidades e nos meios ditos culturais.
Costuma-se dizer, ao se descer uma ladeira, que “para baixo todos os santos ajudam”. No entanto, quando se trata de cortar gastos públicos, de empurrá-los para baixo, os santos, talvez diante de tantos pecados de que tomam conhecimento, sabiamente recusam-se a ajudar e se afastam envergonhados. Estamos ao deus-dará. Em linguagem de economistas, os gastos públicos são inelásticos para baixo: qualquer que seja a intenção de presidentes, governadores e prefeitos de cortá-los, eles permanecem firmes e fortes. A conta? Ora, você, eu, nós, estamos aí mesmo para pagar.
* O autor é doutor em Economia pela FGV
** Artigo do Mês - Ano XIX– Nº 222 – Outubro de 2020
*** Publicado originalmente em https://www.ubirataniorio.org/index.php/artigo-do-mes/409-out-2020-quando-pra-baixo-nem-os-santos-ajudam