• Adriano Marreiros
  • 23/02/2022
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QUANDO AS MATÉRIAS CRIATIVAS JÁ NASCEM MEMES

Os mimizentos MEMEzentos...

 

Adriano Marreiros

 

Eu não preciso ler jornais

Mentir sozinho eu sou capaz

Raul Seixas

 

         Ontem foi um desses dias estilo Roberto Carlos: “eu tenho tanto pra lhe falar, mas com palavras não sei dizer...”.  As palavras não vieram e, sem elas, nem frases, nem parágrafos, nem crônica.  Minha vergonha é menor porque esses brancos também já ocorreram com gente que sempre encantou o mundo das crônicas: Fernando Sabino o conta, em uma das suas, e confessa algo ainda mais curioso: empréstimos e recauchutagens de crônicas.

Em “O Estranho Ofício de Escrever”, conta que “três condenados à crônica diária[1]” costumavam bater papo no bar, onde surgiam boas idéias e que, um dia, Rubem Braga perdeu a cerimônia num momento de aperto e lhe indagou se não teria uma “crônica pequenininha” para lhe emprestar.  Emprestou uma da sopa, Rubem deu uma recauchutada e publicou com novo título.  Claro que isso não ia ficar assim e, um dia, Fernando pediu a ele uma crônica usada: “qualquer uma serve”.  Recebeu de volta a da sopa, fez martelinho de ouro, aplicou correção monetária no preço da iguaria e a publicou: “Esta Sopa Vai Acabar”.

Embora tenha a quem pedir – Sílvio e Érika seriam meu Rubem e minha Sabina (Fernanda só tenho uma: Azevedo!) – não sou tão cara de pau assim: sou muito tímido para isso.  Por isso a crônica de ontem não saiu.  Mas hoje, não no romântico e pitoresco bar, templo da Liberdade, mas no controlado e censurado zap, falando com a Érika, acabei tendo a idéia que me permitiu que o atraso fosse de apenas um dia e não virasse falta.

Um Braga leva a outro, ou melhor, uma do Braga leva a outra e, diante dos tempos que vivemos, lembrei de uma que ele escrevera sobre os jornais[2]: hoje talvez dissessem que era uma violência contra a imprensa e cancelassem Rubem Braga, chamando-o de fascista...

Meu amigo lança fora, alegremente, o jornal que está lendo e diz:

         -- Chega! Houve um desastre de trem na França, um acidente de mina na Inglaterra, um surto de peste na Índia. Você acredita nisso que os jornais dizem? Será o mundo assim, uma bola confusa, onde acontecem unicamente desastres e desgraças? Não! Os jornais é que falsificam a imagem do mundo. Veja por exemplo aqui: em um subúrbio, um sapateiro matou a mulher que o traía. Eu não afirmo que isso seja mentira. Mas acontece que o jornal escolhe os fatos que noticia. O jornal quer fatos que sejam notícias, que tenham conteúdo jornalístico.

E prossegue exemplificando cenas felizes em lares e bares que nunca são retratadas, até concluir que:

Se um repórter redigir essas duas notas e levá-las a um secretário de redação, será chamado de louco. Porque os jornais noticiam tudo, tudo, menos uma coisa tão banal de que ninguém se lembra: a vida...

Juro que nem quero que cheguem a tanto, mas esses últimos dias, vi left-checkers da imprensa checando memes bobos de internet... Vi uma jornalista afirmando convicta que não era piada, que era sério e, pior, há muito mais tempo, tenho visto setores da imprensa distorcer fatos, atacar a liberdade de expressão, apoiar a censura e pedir por mais...

Sinto saudades do pré-adolescente Adriano, então com 12 anos e que, na casa da Professora Therezinha, leu aquela crônica e, como o amigo do Rubem, lamentou um tempo em que apenas escolhiam os fatos mais trágicos para as manchetes, esquecendo o cotidiano.  Imagina se ele visse o que ocorre hoje...  Imagina se ele soubesse o tanto de verdades que tacham de “fake news” para que se possa calar quem pensa diferente, calar quem quer que tenha “um sentimento que toda pessoa madura compartilha com facilidade: a consciência de que as coisas admiráveis são facilmente destruídas, mas não são facilmente criadas”[3]: calar os conservadores...

Juro, o adulto Adriano não quer que cheguem a tanto, não quer que atendam os desejos do amigo do Rubem, mas gostaria de não estar vivendo uma época em que é difícil encontrar imprensa que não seja isenta de verdade (sem vírgula mesmo, aviso a você que gosta de avisos de ironia) e cujas matérias, tendenciosas e... “criativas”, já nascem memes que nunca são “checados”...                                    .”

Pensamento não publicável...

*        Publicado originalmente no excelente Portal Tribuna Diária e enviado ao site pelo autor.

 

Crux Sacra Sit Mihi Lux / Non Draco Sit Mihi Dux 
Vade Retro Satana / Nunquam Suade Mihi Vana 
Sunt Mala Quae Libas / Ipse Venena Bibas

(Oração de São Bento cuja proteção eu suplico)