Tempos estranhos como o que estamos vivendo servem muitas vezes como avisos, qual luzes vermelhas a nos alertarem para alguns ensinamentos úteis que, em épocas normais, não notaríamos, ou, então, que só perceberíamos aos poucos e depois de muito tempo. Uma dessas informações é que essa pandemia está fazendo o autoritário solitário e reprimido, que existe lá no fundo do peito de muitas pessoas, sair do armário e se exibir como um malabarista de semáforo, com a diferença de que os objetos repetidamente lançados para cima e aparados não são bolas ou quaisquer outros objetos sem vida, mas nós, cidadãos assustados e acuados diante de uma estrovenga desconhecida e assustadora vinda da China.
Assim, sentimentos dos mais primitivos e secretos, vindos dos recônditos de algumas almas, costumam aflorar nessas ocasiões em políticos, economistas, especialistas e em todo o tipo de gente, de síndicos de prédios até jornalistas, de porteiros até vigilantes, em uma primavera de despotismo em que florescem robustas e floridas ordens, comandos, controles, proibições, obrigações e tudo o mais que possa agredir nossas liberdades individuais.
Como deve ser delicioso para essa gente mandar fechar o comércio, obrigar todos a usarem máscaras, multar quem se atrever a sair nas ruas, retirar surfistas do mar, prender senhoras que passeiam na areia e muitos outros comandos bizarros, extravagantes e que restringem a nossa liberdade em nome da “ciência” e do “bem comum”! (O leitor haverá de entender as aspas).
A propósito do papel do Estado e desse movimento de saída do armário dos mandões antes enrustidos, vale lembrar a introdução de Ludwig Von Mises ao terceiro capítulo de As seis lições, que trata do intervencionismo:
“Diz uma frase famosa, muito citada: ‘O melhor governo é o que menos governa’. Esta não me parece uma caracterização adequada
das funções de um bom governo. Compete a ele fazer todas as coisas para as quais ele é necessário e para as quais foi instituído. Tem
o dever de proteger as pessoas dentro do país contra as investidas violentas e fraudulentas de bandidos, bem como de defender o país
contra inimigos externos. São estas as funções do governo num sistema livre, no sistema da economia de mercado”.
Vejam bem, Mises admitia certas funções do governo em sociedades de pessoas livres. Hayek, por sua vez, não poucas vezes, ao criticar o keynesianismo, usava a expressão políticas de desespero para classificar as recomendações intervencionistas dos seguidores de Keynes, mas sempre fazia questão de alertar para o perigo de que essas medidas se perpetuassem, como se esse desespero fosse permanente. Essa - exatamente essa – é a grande aflição que os liberais estão sentindo nos últimos meses.
Em tempos “fora da curva”, como guerras, pestes e pandemias, nenhum liberal que tenha os pés no chão deixa de reconhecer a necessidade de alguma ação do aparato estatal. O problema é que, com base inequívoca na evidência, mesmo quem não sabe quem foram Mises, Hayek ou qualquer outro economista liberal sabe que o Estado, quando mete o bedelho em qualquer coisa, por meio de políticas e controles, dificilmente se retira, mesmo quando não há mais qualquer justificativa para alegação de desespero.
Pandemias servem para alimentar o poder dos tiranos e déspotas que são obrigados a ficarem escondidos em tempos normais. Isso é fatal, porque o poder não é mais do que a manifestação política do processo de ação humana, que possibilita a explosão dos instintos primários. Em outras palavras, o que os zelosos defensores da “saúde pública” e do “bem comum” desejam e que não mais precisam esconder, é decidir o que as outras pessoas podem, não podem e têm que fazer. É um fetiche pelo poder, aberração que costuma habitar a personalidade de muitos que exercem cargos políticos e públicos. É como uma tara sexual, uma volúpia incontida de dominar os outros e de sentir êxtase quase orgásmico quando sua vontade é imposta sobre o maior número possível de pessoas.
O que farão quando a pandemia se despedir e ameaçar dissipar seus poderes especiais? Que frustração os abaterá? Afinal, se antes da pandemia comiam angu e bebiam vinho “sangue de boi” e agora, durante ela, desfrutam de lagostas e de vinhos franceses de boa safra, irão se conformar a voltar ao angu e à zurrapa de antes? O poder, ah, o poder...
Não podemos nos iludir. Depois da pandemia, os políticos - que ela tanto está mal acostumando - continuarão tarados por mandar, maníacos por proibir e lunáticos por aparecer na mídia, a não ser que os pagadores de impostos, que são os eleitores, os coloquem no devido lugar em que devem estar em uma sociedade de homens livres. E é por essa razão que, desde já, os liberais devem alertar para os riscos que a liberdade está enfrentando.
Dado o aviso – que espero ser consensual entre os liberais de verdade – copio e colo, para deleite (ou revolta) do leitor, uma lista de projetos escalafobéticos apresentados à Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo, nestes tempos também escalafobéticos.
Anexo
1. Reduz o valor das mensalidades de prestação de serviços educacionais na rede privada do Estado, proíbe a cobrança de multas, juros e encargos e possibilita o trancamento de matrícula enquanto perdurarem as medidas de enfrentamento à pandemia de COVID-19 (Isa Penna – PSOL)
2. Obriga as instituições de ensino superior e pós-graduação da rede privada do Estado a reduzir o valor das mensalidades cobradas durante o Plano de Contingência do Estado de São Paulo para Infecção Humana pelo novo Coronavírus - Covid-19. (Leci Brandão – PC do B)
3. Proíbe as instituições de ensino superior e pós-graduação da rede privada do Estado de cobrar multas, juros e encargos sobre o valor das mensalidades durante o Plano de Contingência do Estado de São Paulo para Infecção Humana pelo novo Coronavírus - Covid-19 (Leci Brandão – PC do B)
4. Obriga as instituições de ensino superior e pós-graduação da rede privada do Estado a manter as bolsas de estudo parciais ou totais aos seus alunos durante o Plano de Contingência do Estado de São Paulo para Infecção Humana pelo novo Coronavírus - Covid-19. (Leci Brandão – PC do B)
5. Obriga as instituições de ensino superior e pós-graduação da rede privada do Estado a aceitar pedidos de trancamento de matrícula durante o Plano de Contingência do Estado de São Paulo para Infecção Humana pelo novo Coronavírus - Covid-19. (Leci Brandão – PC do B)
6. Torna obrigatória a redução proporcional das mensalidades da rede privada de ensino durante o Plano de Contingência do Estado de São Paulo para Infecção Humana pelo novo Coronavírus - Covid-19. (Rodrigo Gambale – PSL)
7. Autoriza o Poder Executivo a proceder a internação de pacientes infectados pela COVID-19 na rede privada de hospitais quando requerida por médico credenciado do Sistema Único de Saúde - SUS em caso de inexistência de leitos na rede pública. (Marcia – PT)
8. Cria a Fila Única Emergencial para Gestão de Leitos Hospitalares, abrangendo os sistemas público e privado, a fim de assegurar a utilização, controle e gerenciamento pelo Sistema Único de Saúde de toda capacidade hospitalar instalada no Estado, com o objetivo de garantir acesso universal e igualitário à rede hospitalar frente à pandemia do novo coronavírus - Covid-19. (Monica da Bancada Ativista – PSOL)
9. Autoriza o Poder Executivo a criar a Central Única de Regulação e a Fila Única Estadual para internação de pacientes com suspeita ou contaminação por COVID-19 em UTIs. (Edmir Chedid - DEM)
10. Autoriza o Poder Executivo a requisitar leitos hospitalares privados para atendimento de pacientes da rede pública e do SUS, bem como vagas de hospedagem para funcionários da saúde, no período de combate à Covid-19. (Carlos Giannazi – PSOL)
11. Autoriza o Poder Executivo a intervir na rede privada de saúde para garantir atendimento a casos graves de COVID-19. (Isa Penna – PSOL)
12. Permite a internação de pacientes infectados pela Covid-19 na rede privada de hospitais, quando requerido por médico credenciado ao Sistema Único de Saúde, em caso de inexistência de vaga na rede pública. (Tenente Nascimento – PSL)
13. Reduz o valor das tarifas de pedágio nas rodovias estaduais enquanto perdurar o estado de calamidade pública decretado no Estado em decorrência da pandemia do novo coronavírus - COVID-19. (Delaegada Graciele – PL)
14. Suspende temporariamente a cobrança das tarifas de pedágio nas rodovias estaduais enquanto perdurar o estado de calamidade pública decretado no Estado em decorrência da pandemia do novo coronavírus causador da COVID-19. (Luiz Fernando T. Ferreira – PT)
15. Isenta de cobrança de pedágio nas rodovias estaduais os veículos de propriedade de servidores e profissionais das áreas da saúde, da segurança pública e do sistema prisional durante o período de surto de coronavírus - Covid-19. (Carlos Giannazi – PSOL)
16. Suspende a cobrança de pedágio nas rodovias estaduais concedidas à iniciativa privada durante o período de surto de coronavírus - Covid-19 (Carlos Giannazi – PSOL)
E, para fechar o desfile de horrores,
17. Altera a Lei nº 10.705, de 28 de dezembro de 2000, que dispõe sobre a instituição do Imposto sobre a Transmissão "Causa Mortis" e Doação de Quaisquer Bens ou Direitos - ITCMD, visando à mitigação dos efeitos da pandemia do novo coronavírus - COVID-19 no âmbito do Estado. (Paulo Fiorilo – PT)
*Em julho 2020
**Publicado originalmente em https://www.ubirataniorio.org/index.php/artigo-do-mes/397-jul-2020-pandemia-e-tirania (blog do autor)
***O autor é doutor em Economia pela FGV