Tal qual um assassino profissional, o marketing do entretenimento não perdoa: aponta para a cabeça do espectador e atira em rajadas
Quem nunca torceu pelo bandido num filme? Bons cineastas sabem transformar a plateia de inocentes comedores de pipoca em cúmplices fanáticos do sujeito que engana a Justiça, se dá bem e escapa no final. O clássico vilão não é novidade; desde Georges Méliès, os roteiristas usam e abusam dele. Porém, há algo de novo no ar.
Uma das séries recentes, o premiadíssimo “Breaking Bad”, conta a saga de um professor de química e de seu aluno que se enchem de dólares ao fabricarem metanfetamina e mergulharem no submundo das drogas. Aposto que ninguém torceu pelos agentes da DEA – Drug Enforcement Administration – no encalço dos dois. Outra série, “La Casa de Papel”, tornou-se febre mundial endeusando uma quadrilha que agia à Robin Hood – roubando dos ricos para dar aos pobres e denunciar “o sistema”. (Animados com o sucesso da “Casa”, os produtores investiram em novas temporadas – estrondoso fracasso de audiência. Quem explica?).
É fácil criar personagens criminosos e ganhar a simpatia do espectador. Basta dar ênfase aos seus traços humanos, problemas íntimos, afetos, dramas de consciência – e pronto: construímos mais um herói. Essa linha criativa está virando tendência. O cinema, os canais de streaming e a televisão brasileira adotaram a marginalidade como matéria-prima preferencial de novelas, filmes, documentários. Vivemos o momento de glória do crime.
Tal qual um assassino profissional, o marketing do entretenimento não perdoa: aponta para a cabeça do espectador e atira em rajadas. “Narcos”, “O Sucessor”, “Narcos México”, “El Chapo”, “Suburra”, “Impuros”, “Orange Is the New Black”, “A Rainha do Sul”, “Escobar” são algumas produções impregnadas de cocaína, heroína, marijuana e chefões do tráfico. As narrativas privilegiam o ponto de vista dos bandidos. A lei, a ordem, a justiça, os direitos do cidadão honesto aparecem como meras chateações que perturbam a vida dos narcotraficantes, essas pobres vítimas da sociedade.
Se é um fenômeno mundial, parece que no Brasil encontrou repercussão ainda mais ampla. Compreensível: historicamente, desde o velho malandro carioca até os políticos corruptos que esculhambaram o país, somos mestres do perigoso flerte com as safadezas. Burlar o radar da rodovia, estacionar em vaga de pessoas com deficiência, levar vantagem no descuido alheio – pequenos delitos ocultam a vocação para tretas maiores.
Nesta semana o noticiário do coronavírus quase foi eclipsado pelo abraço do dr. Drauzio a um presidiário. No centro da briga, a questão delicada: estaria o médico (do qual tenho boa imagem) apenas exercendo caridosamente sua profissão, como ele se defendeu? Ou participava do show business midiático e tendencioso no qual se transformou parte do jornalismo nacional?
Na reportagem (ou no drama novelístico) os editores omitiram o bárbaro crime que levou o protagonista Rafael Tadeu de Oliveira dos Santos à prisão – estupro e estrangulamento de uma criança de 9 anos. Mencionaram, de passagem, apenas outra condenação por furto. Surpreendente é que o crime mais grave só foi revelado depois e pelas redes sociais, enquanto a mídia tradicional se calava, talvez pelo fato de o condenado ser transexual. Atitude semelhante foi percebida quando um casal homossexual executou o menino Rhuan com horripilante selvageria, em Goiás. Indignação seletiva pega mal. No cinema, na ficção, vá lá. Entretanto, um jornalista honesto não pode contar só uma parte da vida real.
O crime, o vício, a bandidagem, os marginais e a violência estão em pauta e na moda; paciência. Difícil é aturar que cada narrador use-os como suporte de causas próprias, transformando os conceitos universais de “bem”, “mal” e “justiça” em coisas frágeis e passíveis de discussão. Aí não tem plateia que engula a trama.
*Publicado originalmente em O Tempo: https://www.otempo.com.br/opiniao/fernando-fabbrini/o-fantastico-show-do-crime-1.2309473