Madrugada calada.
Noite abraçada pelo cansaço.
Todos dormindo.
Ou melhor, quase todos.
O silêncio gritava um diapasão no ouvido estafado.
O ronco acordava o mais despreocupado.
O bebê declarava o amor sob prantos.
A mãe trabalhava o peito, declarando seu amor,
Ansiosa por negar o despeito da vizinha sonolenta.
Rabugenta.
Amargurada e esquecida da própria infância.
Mal-agradecida pela maternidade que jamais conhecera.
A vida era comum.
Estranhamente comum.
Seguia em calmaria inocente ou indolente.
Mas seguia.
Dia após dia, sob espaço calmo.
Obscuramente calmo.
Cada qual ao seu amparo,
Garantindo, assim, o silêncio pacífico na "Vila Andrada".
Vila feliz,
Onde tudo acontecia, e nada se falava.
De repente, um único estalo.
Todos acordados, movidos pela curiosidade.
Tontos, e ainda embaçados em suas vistas,
Abrem as portas de suas casas, avistando a cena do crime - Dona Maria, da casa seis, deitada sobre bloquetes.
Fazia-lhe companhia um rastro de sangue cru, e uma arma ainda quente.
A visão feriu mortalmente os corações dos moradores.
A histeria começou a reinar sobre a Vila.
Todos indignados pela morte da professora que havia ensinado gerações, e ainda ensinaria outras.
Um choro copioso e inconsolado,
Vertia sobre o corpo enrugado da velha tia.
Velha conhecida como "A professorinha da Vila Andrada".
Quem teria tamanha coragem e sandice?
Tirar a vida de uma senhorinha...
A quem sobrou sangue frio para esfriar o corpo da cansada tia?
Logo a professorinha!
A revolta contagia...
E sem esperar o raiar do dia,
Os moradores da Vila,
Pródigos em histeria,
Iniciaram a celebração póstuma da velha tia.
Coitada da tia!
Honrada por cartazes feitos com cauteloso carinho.
Com amor incomum, e inigualável esmero,
Escreviam palavras impregnadas de ódio, dor e amor.
Na última homenagem à tia da Vila:
"Quem matô minha tia?"
"Mecheu com a Tia, mecheu com todos!"
"Tiramão da minha Tia"
"Matarão minha profeçora"
"O que vai ser da minha educassão!"
"Quem trazerá educassão pra Vila?"
"Sauve a Tia da Vila!"
Placas e palavras ornavam o caixão da velha tia.
Se vida tivesse, estaria a tia orgulhosa de seus frutos?
A pergunta ecoou em ouvidos mais atentos.
O mais inquieto era aquele que mostrava maior intimidade com o cadáver.
Seu Freire - entre lágrimas de lamentos e consolo de viúvos - expressava sua gratidão.
E sentia...
Mediunicamente, ouvia a voz da velha amiga que ali jazia.
- Freire, Freire!
- Meu amigo. Não procure assassino algum.
- Suicidei-me!
- Não aguentava mais os frutos de uma vida inteira.
- Se queres saber o motivo de minha ida, leia atentamente os cartazes, e veja com seus próprios olhos tudo que fiz, e a vergonha que me tomou.
- Suicidei-me!
- E após tantas palavras escritas, irei descansar.
- Deixe-me ir!
A revelação pesou sobre Freire que, fingindo passamento menor, curou-se com água e açúcar.
Logo Freire recobrou o juízo, tratando de acalmar os espíritos doloridos.
Pranteou, como poucos, o luto da Tia da "Vila Andrada".
E comemorou, com todos, a chegada da nova Professora da Vila.
Uma jovem bonita e vistosa.
Substituta da velha tia,
Em todos os termos.
Em novos tempos.
Parecia sobremaneira inteligente.
Apta ao lugar.
De pronto abusaram, ambos, da "empatia".
Freire e a "nova" professorinha tornaram-se íntimos.
Ímpios parceiros intelectuais,
Cúmplices gramaticais,
Párocos da letargia.
E a Tia?
Todos passam.
Ela passou.
A vida retomou seu curso...
Os moradores seguiram passivos.
Freire, como bom e velho amigo, aconselhava a todos.
A nova professorinha, escutava.
E a "Vila Andrada" seguia moribunda.
Rota e analfabeta.
Burra.
Porém, "feliz".
Harley Wanzeller. 16.05.2019