• Claudia Piovezan
  • 15/03/2021
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O ABRAÇO QUE EU DEI!

Claudia Piovezan

"Quando nada mais restava diante da tragédia, além do meu abraço"...

 Era uma fria manhã do final de junho de 2017, uma terça-feira, quando recebi, ainda em casa, um telefonema de uma colega de trabalho me perguntando se eu poderia atender uma família aflita. Respondi que sim, que já estava de saída e que poderiam me encontrar lá em poucos minutos, já que o assunto parecia urgente.

Logo depois de ter chegado ao gabinete, entram cinco pessoas, três mulheres e dois homens, uma se identifica como mãe e a outra como irmã de um rapaz que havia desaparecido na noite de domingo. Visivelmente abatidas e preocupadas, elas me relataram que na tarde de domingo ele havia jogado voleibol com os amigos e à noite, depois de tomar banho, avisou que estava indo a um bar encontrar um amigo que chegara de São Paulo, mas que não demoraria, tanto que nem levaria o celular.

Acontece que ele não retornou. Na manhã seguinte, a mãe percebeu que ele não voltara, que o celular continuava carregando no quarto, não havia chamadas em seu próprio celular, e isso nunca acontecera. Começaram então a ligar para os amigos, para o patrão, mas ninguém sabia dele. O amigo de São Paulo, que era um dos que estava no meu gabinete, relatou que Sandro resolveu ir embora mais cedo alegando estar cansado, foram até o carro, onde se despediram e depois não soube mais dele.

Diante da situação, já percebi que o caso era grave. A mãe contou que tentara acionar a polícia, mas nem a atenderam alegando que tinha um prazo para reportar desaparecimento e, por isso, ela estava sem saber a quem recorrer.

Tomei as declarações de todos a termo, peguei uma autorização para acessar o conteúdo de celular e imediatamente acionei o Instituto de Criminalística requisitando verbal e documentalmente uma verificação do conteúdo do celular e acionei a Polícia Civil que, prontamente, me atendeu. Encaminhei-os para a Delegacia Operacional e tentei acalmá-los, mesmo sabendo que as probabilidades de final feliz eram pequenas, naquele contexto.

Na saída, dei abraço em todos e fiquei à disposição para atendimentos futuros, se necessário.

A partir daí, o delegado de polícia responsável pelo caso passou a me informar sobre cada passo da investigação. No final daquela tarde, um policial militar me mandou uma mensagem dizendo que haviam encontrado um corpo masculino, nu, enormemente torturado, cuja pele da face havia sido integralmente arrancada, jogado em um meio a um milharal, na zona rural de Londrina. Tudo indicava que era o rapaz desaparecido. Alguns minutos depois, ele me confirmou o reconhecimento pela família.

A partir daí, a polícia civil fez uma competentíssima investigação, identificou um dos autores e rapidamente conseguimos a sua prisão, oportunidade em que confessou detalhadamente o crime bárbaro.

O fato se deu quando o rapaz, ao sair da casa noturna, passou na região central de Londrina, em ponto de prostituição, e pegou um garoto de programa para ir a um motel. Lá, um segundo indivíduo se uniu aos dois e, ambos drogados, resolveram roubar o carro da vítima. Para tanto, ela foi torturada das formas mais bárbaras que se pode imaginar, enrolada em um lençol e transportada no próprio veículo para a zona rural, onde foi desovada.

Já de manhãzinha, um dos latrocidas deixou o carro em um estacionamento e o vendeu para um traficante, que, por sua vez, imediatamente, o vendeu para um receptador de uma cidade vizinha, que veio buscar o carro e o levou para a fronteira do Paraná com o Mato Grosso do Sul e Paraguai, onde o vendeu para um contrabandista de cigarros, tudo no mesmo dia – segunda-feira. 

Assim, quando o corpo foi encontrado, todos esses negócios espúrios já haviam se concretizado e o carro estava há centenas de quilômetros de distância. Além do carro, os latrocidas subtraíram o par de tênis novo da vítima e suas roupas. O carro foi trocado por drogas. Após o crime, os bandidos, já sem qualquer laço familiar ou social tamanho envolvimento com drogas e ilícitos, se esconderam em uma mata nos arredores do centro da cidade.

O primeiro a ser preso foi encontrado nesse acampamento/cracolândia, em situação que mais lembrava a um selvagem. Preso, confessou o crime e disse apenas o apelido do comparsa.

Ele foi condenado a 26 anos de prisão em regime fechado, mas com direito a muitos benefícios para sair o mais breve possível da prisão, pois até leitura ou falta de leitura disponível dá direito a redução de pena, sem contar o regime de “prisão estatístico” de tornozeleira eletrônica. segundo latrocida, também preso meses depois, foi condenado a 25 anos de reclusão com direitos a muitos benefícios e paparico bandidólatra.

Em qualquer audiência judicial ou entrevista para a televisão, esses sujeitos aparecerão como “pobres vítimas da sociedade, vítimas das drogas, vítimas de famílias desestruturadas, vítimas da pobreza”, etc… mimimi…, sem que ninguém tenha consultado as famílias, amigos, vizinhos, professores para conhecê-los desde o berço.

Passada a fase processual, ninguém mais quer saber o motivo da prisão, todo o sistema quer encontrar um jeito de colocá-los na rua o mais rápido possível.

A cada passo dessa jornada, eu pensava naquela mãe que morava apenas com aquele filho, que era seu arrimo em todos os sentidos, inclusive, fonte de sustento.

Sabendo então da data e local do velório, vesti-me de coragem e lá fui prestar as minhas condolências para a família e para os amigos. Quando a mãe e a irmã me viram, nos abraçamos e não consegui conter as lágrimas. Nada havia a ser dito. Não tem consolo e não tem explicação. Depois, elas me agradeceram, mas eu nada fizera. Aquele rapaz partira da vida terrena e o único consolo possível seria o espiritual.

A nossa profissão tem muitos espinhos e uma enormidade de frustrações. Saber que se luta do lado certo é o único motivo de orgulho e de consolo, e às vezes, esse consolo só se materializa em um abraço que eu dei.

Nota da Redação do Tribuna Diária, onde este artigo foi publicado originalmente no dia 12/03/2021:

Mais de 60 mil brasileiros morrem todos os anos, vítimas da bandidolatria que se instalou no imaginário ideológico nefasto que eclipsou a nação. Perdemos mais homens e mulheres das nossas forças policiais por ano, no confronto com a bandidagem, do que a Força Expedicionária Brasileira deixou em solo italiano, durante toda a segunda guerra mundial. Nós do Tribuna Diária, não seremos cúmplices desse democídio.

*A autora é Promotora de Justiça do MP/PR em Londrina.e organizadora do livro "O Inquérito do fim do mundo".