• Luis Milman
  • 22/07/2015
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MAIORIDADE PENAL, ABSTRACIONISMO E DISSONÂNCIA COGNITIVA

Todos os que defendem a manutenção da maioridade penal em 18 anos são forçados a admitir que o Estatuto da Criança e do Adolescente, que agora comemora 25 anos, é, no melhor dos casos, uma bela peça sociojurídica. Mas é uma peça de ficção, como outras tantas produzidas em gabinetes e que não passaram no teste da realidade. A defesa da sua manutenção, tal como está, consagra um pensamento vicioso, porque é forçado a reconhecer que o estado fracassou na administração do sistema penitenciário, que é um desastre na condução do ensino público, que inexiste na produção de condições mais dignas para quem vive nas periferias das cidades e que não tem soluções para enfrentar os alarmantes níveis de criminalidade. Afinal, todas estas constatações foram e são feitas por aqueles mesmos que tentam impedir, a qualquer custo, que seja votada a PEC da redução da maioridade penal no Congresso. Mais significativo ainda é o fato de que o reconhecimento dessa sucessão de fracassos sustente o argumento dos governistas que desejam manter o status quo e que há quase 13 anos administram o país. Os seus porta-vozes permanecem apegados a escapismos e a fantasias sobre a personalidade abstrata de pessoas com menos de 18 anos que cometem crimes graves. O assunto permanece na pauta do Congresso, mas ao histrionismo vitimista, contra todas as evidências, continua a mostrar como as esquerdas no Brasil, em estado cognitivo-dissociativo, são capazes de violentar o bom senso.

Por despreparo e má fé, os esquerdistas manipulam abstrações enquanto ignoram a realidade. A abstração sempre foi inimiga do realismo e da prudência. Ela não é a generalização a partir dos dados da experiência, nem a formulação de hipóteses sobre regularidades constatáveis estatisticamente. Abstrações são sistemas fechados de ideias, alguns meramente esquemáticos, outros aparentemente mais elaborados, mais ideológicos, que são impostos ao real e que, em muitos casos, conflitam com ele. Como sempre há discrepância entre o ideal abstrato e os dados empíricos, o abstracionista tende ou a abrir mão dos dados, ou a ignorá-los ou mesmo a falsificá-los, para preservar a coerência interna do sistema abstrato no qual acredita. Cito dois exemplos de abstracionismo clássicos: o primeiro, no qual Marx falsificou os dados dos cadernos azuis de Gladstone, sobre a condição de renda dos trabalhadores ingleses para provar que a rende média dos operários ingleses, ao contrário do que os dados permitiam afirmar, crecia na Inglaterra. O segundo é sobre o paleontólogo inglês Charles D. Walcot, diretor do Smithsonian Institut, a maior organização de museus e curadores de sua época, no início do século XX. Walcot descobriu , no platô de Burgess Pass, Canadá, cerca de 60 mil fósseis do período Cambriano (550 a 450 milhões de anos). A descoberta desafiava o estado da arte darwiniano e também a mente de Walcot e, por isso os fósseis coletados foram mantidos em segredo, nos porões do Smithsonian Museum por oito anos, porque Walcot via nos fósseis das rochosas de Burgess Pass a negação da teoria randômica da evolução de Darwin. Por isso, a coerência, tomada isoladamente, ou seja, desconectada da realidade, é sinal de uma patologia nada incomum, a dissonância cognitiva, ou seja, o desejo humano inerente de ignorar fatos desagradáveis para preservar ideias já consolidadas na mente. Disso resulta, na atividade racional, uma violência cometida sobre os fatos, imposta por uma racionalidade deformada que, no campo da ciência e da política, pode terminar em desastre.

Neste tema da maioridade penal, é evidente que, para qualquer padrão sensato de avaliação, menores de 18 anos que cometem crimes possuem capacidade de discernimento moral. Eles fazem escolhas conscientes e sabem o que é legalmente permitido. Essa é a regra no plano psicológico. Nesta faixa etária, todos sabemos o que fazemos e os criminosos não são levados para fora da lei por algum tipo de heteronomia social ou econômica, por uma condição de classe, raça ou de cor, como apregoa o esquerdismo abstracionista. A imensa maioria das pessoas de qualquer idade, de todas as classes sociais, enfrenta as dificuldades da vida dentro de parâmetros estritos de normatividade, quer praticando-os estritamente, quer observado-os como limites de possibilidade de convivência na sociedade. Esta realidade, como não pode ser negada pelo abstracionista, é interpretada de modo distorcida, como prova de que as pessoas em geral não se rebelam como deveriam contra as injustiças sociais, que elas são mantidas em estado de domesticação pela hegemonia exercida pela classe dominante. Muitos abstracionistas escreveram sobre isto nestes termos. Muitos também sustentaram que a revolução e a rebeldia são expressões de uma revolta contra condições permanentes de opressão. E que o crime, ao fim e ao cabo, é uma forma de resistência do oprimido.

Uma vitória do esquerdismo abstracionista no campo dos argumentos para a manutenção da maioridade penal em 18 anos representa uma derrota da razão reta na compreensão das condições que levam um indivíduo a praticar crimes violentos, independentemente da sua idade, em situações psicológicas, morais, culturais ou sociais dadas. O esquerdismo reduz estas situações ao determinismo vitimista: a culpa jamais é do autor do crime, ainda mais se se tratar de um jovem; ela - a culpa- é distribuída pela sociedade, está determinada pela sociedade que o produziu e que deve, esta sim, ser reformada, mesmo que no plano idealizado.

Para o abstracionista, diga-se, esta sociedade, até mesmo já existe conceitualmente, mas não pode ser realizada porque as forças da reação, os conservadores, os exploradores do trabalho e da psicologia das massas defendem seus interesses por meio de instituições opressoras, como a lei que pune vítimas sociais que optam pela marginalidade. Abstracionistas sequer são capazes de fazer uma discussão equilibrada sobre as razões da existência dos alarmantes índices do crime no Brasil e sobre a disfuncionalidade abjeta das penas na nossa sociedade, do sistema de progressão de regime prisional, do crime sistêmico que enlaça tráfico de drogas e roubo e dos fatores que levam à reincidência. Quando falam sobre o assunto, recaem na ladainha das desigualdades e injustiça sociais. Põem-se a teorizar sobre direitos vagos à ressocialização não-punitiva, sem, ao menos, exigir do estado que faça os necessários investimentos em prisões e na sua administração, que hoje existem como antros dominados por grupos criminosos organizados. Parecem ignorar que o Brasil, depois de áreas de conflito e guerras civis, é o país onde mais se mata no mundo, com uma marca de 60 mil assassinatos por ano.

O esquerdismo mostra, também neste assunto, que é a infantilização dissonante da razão. Mas a Câmara dos deputados parece não estar se intimidando com o ataque colérico dos abstracionistas. A vontade esmagadora em favor da mudança na Constituição, que permitirá a nova norma, ao que tudo indica, tem todas as chances de prosperar no Congresso. Caminhamos, com isto, para resolver, não por óbvio, todos os problemas da criminalidade endêmica no Brasil, mas uma situação de anomalia de impunidade que existe na relação entre o estado e aqueles que praticam crimes repulsivos em quaisquer faixas etárias.


Nem sempre, é claro, o abstracionismo da esquerda determina as decisões políticas no Brasil e, mais ainda, termina vencedor em disputas parlamentares. A vitória da primeira votação da PEC que instituiu a idade penal para maiores de 16 anos (falta mais um turno na Câmara e dois no Senado), em caso de crimes graves que atentam contra a vida (PEC mitigada com relação a primeira, que foi rejeitada) nos força a reconhecer que o bom senso e o componente realista estão pautando as decisões da maior parte dos deputados federais. E isto em que pese o desproporcional empenho do governo e das esquerdas em derrotar a emenda que altera a constituição. Viu-se – e ainda se vê- nesta queda de braço entre os realistas, que contam com o apoio de mais de 85 por cento da população brasileira, segundo as pesquisas, e os abstracionistas, que contam com eles mesmos e com uma legião de ONGs sustentadas pelo estado para atuarem nas áreas de assistência a jovens criminosos, que a força dos argumentos tem sido, pelo menos até aqui, mais efetiva que a força da delinquência política orientada pela dissonância cognitiva dos esquerdistas.


O governo investiu pesadamente na tentativa de desmoralizar os defensores da PEC – a começar pela campanha de difamação contra o deputado Eduardo Cunha, presidente da Câmara – que diminuiu, em votação de primeiro turno, a idade penal. Uma reflexão sobre o empenho governista, ainda mais em se tratando do Partido dos Trabalhadores e da esquerda que é satelizada por ele, revela que não está em jogo, nesta disputa entre os que querem diminuir a idade para a responsabilização de crimes e os que querem mantê-la tal como é hoje, apenas questões fáticas ou doutrinárias específicas. As esquerdas defendem, com suas posições, um status quo sistêmico, regado a bilhões de reais que saem dos cofres públicos para abastecer ONGs e uma burocracia de assistência aos menores de idade infratores que, com a aprovação definitiva da PEC, simplesmente deixaria de ter razão de existir.


É desnecessário ser exaustivo neste ponto, mas um ou dois comentários devem ser feitos. O Estatuto da Criança e do Adolescente, que, tal como é hoje, será remetido para a lixeira da história, caso a PEC votada em primeiro turno venha a ser confirmada mais uma vez na Câmara e, depois, no Senado. O ECA vem sustentando a existência de uma rede assistencialista e ineficaz para menores criminosos, onde operam desde promotores de justiça, assistentes sociais e psicólogos a ONGs financiadas por dinheiro público. Este aparato é, como sabemos, caro e injustificável, porque a criminalidade entre os jovens só faz aumentar. Pelas estatísticas disponíveis ao Ministério Público de São Paulo, entre 15 e 30 por cento dos crimes violentos naquele estado são cometidos por jovens na faixa de 15 a 18 anos. O ponto, aqui, é que não há estatísticas mais precisas para todo o país, o que, por si só, já demonstra a inconsequência com que o assunto é tratado pelas autoridades de segurança em nível nacional. Com base nos dados de que dispomos, se contarmos apenas os homicídios, e considerarmos que 10 por cento dos crimes contra a vida são praticados por menores, isto significa que das 55 mil vítimas anuais destes crimes no Brasil, no mínimo 5,5 mil deles são cometidos por menores de 18 anos.


O número é alarmante e, só por ele, já estaria justificada a redução da responsabilização criminal. Já vi, por ouro lado, defensores da manutenção da maioridade penal em 18 anos governistas e nefelibatas afirmarem que apenas 1 (um) por cento dos homicídios cometidos no Brasil são de autoria de menores de 16 anos, sem apresentarem qualquer fonte para estes dados. Bem, a afirmativa é ridícula, por dois motivos: primeiro, porque apenas 8 (oito) por cento dos homicídios praticados no país são esclarecidos, segundo dados do próprio Ministério da Justiça. Assim, como podemos saber se dos 92 por cento restantes, apenas 1 (um) por cento é praticado por menores? E, segundo, ainda que fosse apenas 1 (um) por cento o número de homicidas juvenis, porque não se aplicar a estes as penas comuns?


Os bandidos juvenis fazem parte daqueles grupos sociais mais marginalizados da população, é verdade. Mas o número de homicidas e ladrões violentos entre eles demonstra que vivemos numa sociedade em que a carga dissuasória para o cometimento de crimes é baixa, ou seja, que o caráter preventivo da pena é ineficaz e que é urgente elaborarmos, no plano da repressão (a mudança da lei) e do ensino formal -os dois eixos de estruturação de uma política de combate à violência – uma estratégia capaz de ser efetiva com relação ao combate à crescente criminalidade juvenil. Outro detalhe importante: em sua grande maioria, são os menores mais pobres que cometem crimes graves, mas, também, é a população mais pobre que é sua vítima.


A questão, assim, se resume ao que fazer com os menores delinquentes. O número devastador de criminosos juvenis, sempre encoberto por estatísticas inexatas e pela retórica abstracionista, afasta, na realidade, qualquer interpretação leniente do problema da criminalidade no país. O que a realidade nos mostra, aquilo que todos sabemos, tanto pelas informações contínuas, embora desconectadas, que recebemos, como pela certeza de insegurança constante em que vivemos, é que a criminalidade, nos níveis atuais, é assustadora. Para os abstracionistas, como já escrevi, estes assassinos juvenis devem ser tratados como incapazes e submeterem-se apenas a uma tutela socioeducativa do estado, que, depois de, no máximo três anos, se esgota e os libera para a vida social, independentemente da gravidade do crime que cometeram. Isto não é pena, é terapia e das piores, porque grande parte dos criminosos que são submetidos a ela, volta a praticar crimes depois dos 18 anos. Já para os realistas, que apoiam a redução da maioridade penal, estes criminosos devem sofrer as sanções da mesma lei válida para adultos, como forma de punição. Não nos esqueçamos que a punição retributiva é uma função central da aplicação da lei criminal. E mais, que somente no curso do cumprimento da pena, os criminosos juvenis possam, como os demais apenados, tentar se reinserir na sociedade. A prisão, mesmo nos países mais avançados no mundo, não é, certamente, a melhor das escolas. Mas, se administrada com controles rígidos e eficazes, pode, sim, ajudar na ressocialização, dependendo da disposição do apenado, ainda mais se levarmos em conta que, no Brasil, o mais abjeto assassino ou estuprador tem direito, depois de condenado, a regimes progressivos de pena, de fachado à semi-aberto, de semi-aberto à aberto. Ou seja, ninguém, excetuando-se, os sociopatas reincidentes, cumpre a totalidade de sua pena em reclusão.


Pode-se argumentar, mais uma vez ao estilo abstracionista, que as prisões brasileiras são precárias, que jovens criminosos serão simplesmente misturados a adultos criminosos em cadeias superlotadas, controladas por facções criminosas. Mas isto é desenvolver um argumento falacioso: a mudança de assunto. Mudamos de assunto quando dizemos que os governos que se sucedem, em nível estadual e federal, são incompetentes e insensíveis para tratar com a questão prisional, uma vez que não é disso que se trata quando propomos uma análise sobre a questão penal. A discussão da penalização pelo crime é moral, psicológica e sociológica. A implementação da pena é administrativa. Se o estado fracassa no âmbito administrativo, isto não pode servir de argumento para precarizar a aplicação da lei penal, porque, desta forma, estaríamos simplesmente, comprometendo a forma lúcida de compreender o problema, a saber: é a correta e exigida aplicação da pena que demanda (a) mais prisões, (b) mais prisões controladas pelo estado (ou terceirizadas) e não pela criminalidade (c) mais prisões controladas nas quais, à pena de privação de liberdade, não seja agregada outra, a de humilhação compulsória.

Quanto aos jovens criminosos, que se providencie dependências prisionais adaptadas e separadas, a exemplo do que ocorre em vários outros países do mundo. O que não dá mais para tolerar é a impunidade de pessoas que mataram ou estupraram, e que pelo fato de não terem completado 18 anos ainda, sejam eximidas de responsabilidades e tratadas, pelo estado, como meras crianças disfuncionais que, depois de uma precária atenção assistencialista, podem voltar as ruas como se jamais tivessem praticado crimes graves. Elas não são crianças em nenhum sentido do termo. São jovens adultos que fizeram escolhas pelo crime. E na civilização, a punição corresponde ao crime praticado, para que seja preservada a ordem social em um de seus fundamentos: a garantia da aplicação da justiça.

Que se continue a aplicar o ECA, não o atual, mas outro, a delitos de baixo potencial ofensivo praticados por menores. Ninguém tem nada contra isso. Que se façam investimentos em educação formal em casas de ressocialização para menores que furtaram, envolveram-se com drogas e não provocaram danos irreversíveis às suas vítimas. Apenas uma mentalidade paranoide pode querer equiparar estes tipos de crimes aos crimes graves, que terminam em morte ou violência insana, como o homicídio, o latrocínio ou o estupro, que um número elevado de menores tem praticado impunemente no Brasil. Até mesmo porque grande parte de nossa juventude está entregue às drogas e uma das primeiras consequências desta realidade é a ruptura com os freios morais. Por isso, não se pode mais distorcer ideologicamente a realidade para adaptá-la a uma abstração delirante sobre as causas da criminalidade, cujo pressuposto é que os criminosos, sejam de que idade forem, são compelidos a condutas desviantes pelo, digamos assim, mundo desigual em que vivem. Este tipo de falsa racionalidade é uma abstração dissonante da realidade, mas continua sendo defendida por intelectuais da esquerda brasileira e pela mídia militante que os apoia e que faz ecoar o efeito nefasto de suas ideologias de poltrona . A realidade é que as maiores vítimas da delinquência juvenil são jovens e adultos de periferia. A verdade é que as abstrações desta natureza demonstram o quanto ainda estamos distantes de pensarmos em soluções efetivas para os nossos problemas mais urgentes.