O passado tem sua própria forma e não se transforma.
Em 1521, na ilha filipina de Mactán, soldados da armada de Fernão de Magalhães, tendo à frente o próprio, lutaram nas praias contra nativos chefiados por Lapu-Lapu, líder tribal.
O explorador combatia em nome do rei da Espanha; o cacique defendia a aldeia da invasão estrangeira. Antonio Pigafetta, escrivão da esquadra, no seu “Relazione del Primo Viaggio Intorno al Mondo” de 1525, conta que a coisa virou uma carnificina pavorosa. Lapu-Lapu e Magalhães morreram e foram esquartejados; poucos sobraram da refrega.
Os espanhóis construíram lá um memorial com a placa: “em 27 de abril de 1521, o grande navegador português Hernando de Magallanes, a serviço do rei de Espanha, foi aqui assassinado por nativos filipinos”. A poucos metros de distância ergue-se a estátua de Lapu-Lapu: “em 27 de abril de 1521, o grande chefe Lapu-Lapu repeliu aqui o ataque de Hernando de Magallanes, matando-o e expulsando suas forças”. É desse jeito que as histórias são contadas e as estátuas erigidas.
Recentemente, ativistas enfurecidos destruíram monumentos de personalidades cujas biografias os incomodavam. Tolice: a história não é escrita de marcha-a-ré. Se no passado, sob determinadas circunstâncias ou movido por convicções fulano fez isso ou aquilo, é impossível apagar o episódio demolindo pedestais. São marcos de outros tempos e modos; referências sobre as quais devemos, sim, refletir e aprender.
E, se necessário, transformar a vida de forma prática e madura – e não com birrinhas. Desse jeito só repetiríamos a estupidez do rei que matava mensageiros que traziam más notícias em vez de ouvi-las, rever estratégias e agir melhor.
Quando a história é cruel e repugnante, não devemos esquecê-la – nem tampouco maquiá-la. Fiéis a isso, arquitetos alemães projetaram em Berlim o “Topografia do Terror”, memorial do holocausto inaugurado em 2010. Trata-se de uma construção seca, insípida, quase sem graça – tudo premeditado. Apesar de grande parte da obra estar ao ar livre, é proposital também a ausência de áreas verdes, substituídas por insólitos canteiros de pedras. Há reproduções tétricas de calabouços da Gestapo e registros dos horrores dos campos de prisioneiros.
Os visitantes – muitos jovens, como no dia em que fui lá – mantêm-se num silêncio pesado, encarando o terrível período. Tudo sem escusas, sem joguinhos tecnológicos que divertem o público nos museus de hoje. Sem filtros, diria. Paira no ar uma dura lição. Ninguém sai de lá “aliviado”.
Perto de nós será construído um memorial dedicado às vítimas do desastre da Vale em Brumadinho. Mas, já? Pouco mais de um ano após a calamidade, corpos ainda sob a lama, indenizações em discussão? Por respeito aos mortos, a seus familiares e pela gravidade da catástrofe, é essencial que seja explicitada, com clareza, a real intenção da obra. Ela educa, alerta, contribui para prevenir futuros acidentes? Qual a lição que fica? Quem a está bancando e para quê?
Espera-se que a mensagem subjacente desse memorial não se restrinja a metáforas arquitetônicas e museológicas, eufemismos cenográficos para incorporar estranha leveza à tragédia ou insinuar que tudo não passou de uma lamentável fatalidade. Tal formato poderia transmitir a ideia enganosa de que alegorias virtuais amenizariam a indignação, as saudades e as carências ainda em curso.
Num famoso pôster criado por um artista gráfico nova-iorquino, um imenso palavrão domina quase toda a área do cartaz. A expressão chula, entretanto, foi desenhada em letras elegantes, com brilhos, dégradés. Ficou linda. Porém, logo abaixo, vem o texto irônico: “a boa execução não resolve a má ideia”. (“You can’t save a bad idea with a good execution”). Embora embelezado com firulas, não teve jeito: o palavrão continuava sendo um palavrão; a maquiagem não conseguiu disfarçá-lo.
Fatos históricos têm características próprias; é impossível apagá-los ou enfeitá-los. Sejam edificantes ou vergonhosos, deprimentes ou alentadores, através deles só nos cabe aprender – com a atenção e a humildade do bom aprendiz.
*Publicado originalmente em O Tempo de BH e enviado pelo autor.