É comum dizer que o conservadorismo não constitui uma teoria ou doutrina, não tem uma cartilha e não se esgota ou encerra em nenhum específico ideário ou movimento político-partidário. Mas, ainda assim, é possível extrair da antiquíssima tradição do conservadorismo alguns fundamentos e orientações gerais que, se não chegam a constituir uma teoria, articulam uma específica compreensão do fenômeno político e estimulam certas disposições que dão identidade ao conservador. Esta é uma modesta tentativa de apresentar uma rápida síntese daqueles principais fundamentos e orientações gerais. A preocupação não é historiográfica, e por isso se vale de ideias tiradas de diferentes vertentes do pensamento conservador. O objetivo é apresentar o conservadorismo no seu melhor, naquilo que tem de mais valioso para a compreensão da realidade e a orientação do agir político.
Os conservadores acreditam na existência de uma realidade transcendente que está para além deste mundo, e que somos seres intermediários, pois ao mesmo tempo em que estamos aqui, neste mundo das coisas transitórias e contingentes, estamos também lá, naquele mundo das coisas eternas e permanentes. Estamos, então, no tempo, mas também para além dele. Há partes em nós que nos conectam mais diretamente a este mundo contingente, das coisas que se podem ver e sentir, mas há também partes em nós que podem nos conectar ao que que é eterno, a tudo aquilo que transcende este mundo imanente. Se somos, por um lado, sacudidos, agitados pelas nossas paixões, somos também interpelados por aquela realidade das coisas que não se veem. A abertura para essa realidade, e a tentativa de nela participar através da nossa razão, é uma das coisas que faz de nós humanos, e um indicativo importante de uma alma saudável.
Não somos, pensam os conservadores, nem bestas nem deuses. Não devemos, portanto, nos reduzir à condição de uma besta, de um animal irracional que tem só sentimentos e se deixa governar pelas paixões. Mas também não podemos nos alçar à condição de deuses, como se pudéssemos tudo saber e governar o mundo como quem tudo sabe. A moderação é, assim, uma exigência da nossa própria natureza. Podemos vislumbrar certas verdades e exigências que vêm daquela nossa abertura para a transcendência, e esse vislumbre deve sim orientar o modo como nos movemos neste mundo. Mas o que podemos saber, por melhores que possamos chegar a ser, não nos dá certezas suficientes para nos autorizar a tomar o mundo inteiro em nossas mãos, com o propósito de fazer dele a realização da ideia de um qualquer de nós acerca de como ele deveria ser. Partimos do mundo como ele é, do homem como ele é, da sociedade como ela é, e, com todo o cuidado e respeito por tudo que encontramos, vamos pouco a pouco, num contínuo e vagaroso processo de tentativa e erro, ajustando e melhorando o que está ao nosso alcance. É mais importante preservar o que atingimos até aqui do que forçar o curso das mudanças que desejamos, pois no caminho podem se perder, irreversivelmente, conquistas importantes às quais não podemos renunciar.
Por tudo isso, os conservadores preferem se apegar ao que já se sabe, resguardar o que já temos, confiar no que está já estabelecido e proteger o que a experiência, até aqui, mostrou que funciona. O mundo que temos e a sociedade em que vivemos se sustentam em um complexo e delicado equilíbrio. Não são o resultado do conhecimento, da intenção ou da ação de alguém em particular. Resultam, sem bem sabermos como, de conexões e ajustes que vão acontecendo meio que à revelia dos nossos projetos e ideais. Formam ordens espontâneas que vão num crescer de caso a caso, de situação em situação, e assim as coisas vão se acomodando por meio de interações e conexões cada vez mais complexas que resultam em um arranjo que não foi, nem poderia ter sido, pensado ou criado nem pelo mais sábio e prudente de todos os homens. O conservador sabe disso. E é por isso que dá valor à ordem do mundo e às tantas ordens parciais que vão acomodando as nossas necessidades e dando sentido à nossa existência.
Disso resulta que a ordem da sociedade não pode ser gravemente perturbada por meio da nossa ação deliberada. Na medida em que é uma ordem espontânea, e não uma organização, não pode ser substituída nem inteiramente transformada por meio de uma direta intervenção nossa. Podemos e devemos sim nos abrir para aquela ordem transcendente que está para além da ordem da sociedade, e é de se esperar que, depois disso, nos voltemos para as coisas deste mundo com intenção crítica e cheios de sedutoras ideias acerca de como fazer deste um mundo melhor. Mas por melhores e mais verdadeiras que sejam as nossas ideias, temos sempre que lembrar que o mundo, a sociedade e as pessoas, com todos os seus problemas, são resistentes e não mudam a nosso critério. Que não conseguimos, então, mudá-los à nossa maneira, sem deixar um rastro de destruição. E que não há nenhuma garantia, nenhuma segurança, de que, no final, com o que tiver sobrado, o resultado será melhor do que aquele complexo e delicado arranjo que antes existia. Então não vamos renunciar à tarefa de cuidar deste nosso mundo, para que constitua, para nós, uma habitação segura e a melhor possível. Mas assim como não derrubamos a nossa casa cada vez que algo nela nos incomoda, não destruiremos a ordem da sociedade só porque há nela tanto a melhorar. É muito mais seguro ir ajustando o que é possível no contexto da ordem que aí temos, do que sair dela para construir uma outra inteiramente nova.
O governo, pensam os conservadores, deve estar sujeito à ordem que governa e limitado pela exigência da sua manutenção. A ordem da sociedade é em si mesma um bem, pois é nela que, com maior ou menor precariedade, encontramos espaço para a nossa existência. E como aquela ordem mais compreensiva é composta por tantas outras ordens parciais ou intermediárias, o governo precisa também respeitar certos limites que vêm da exigência de proteção dos espaços constituídos por essas ordens, e tanto mais deve preservá-las quanto mais contribuam para tudo aquilo que dá sentido à nossa existência. O nosso bem tem inúmeras dimensões e se realiza de variadas maneiras, em ambientes e contextos diversos. O florescimento das nossas virtudes supõe vínculos e arranjos comunitários ou associativos de tipos muito diferentes. Não só porque são várias as dimensões e modos de realização do nosso bem, mas também porque, sendo ao mesmo tempo livres e tão diferentes uns dos outros, precisamos encontrar, cada um de nós, no exercício da própria responsabilidade individual, os caminhos e espaços que melhor propiciam o aperfeiçoamento do caráter, o progresso do saber, o cuidado dos outros e tantas outras coisas que são necessárias para a realização de cada pessoa. Então o governo, além de respeitar as associações voluntárias e as comunidades intermediárias que compõem a ordem social, deve assegurar o respeito ao princípio da subsidiariedade, de forma que as ordens mais compreensivas e as instâncias superiores se abstenham de tomar para si tudo aquilo que deva ser reservado à esfera de liberdade e responsabilidade de cada uma das ordens parciais e das instâncias inferiores.
O conservador será sempre, por essas decisivas razões, avesso a todas as formas de totalitarismo. A ordem da sociedade não é o todo da ordem e não pode haver um soberano absoluto ou qualquer tipo de poder ilimitado. Ninguém pode ter a supremacia, pois a supremacia é das exigências da ordem, e uma delas é que a própria ordem da sociedade não queira ser uma ordem total e, no seu interior, não haja nenhum soberano absoluto. Isso não significa que o governo e as leis devam ser indiferentes ao que é bom e justo. Pelo contrário, o bem comum e a justiça são os fins mesmos do governo e do exercício do poder. Mas, precisamente por isso, não pode ninguém nem instância nenhuma concentrar poder demais. Se alguém ou determinada facção toma para si todo o poder, a tendência é que o regime degenere, pois quem governa, quer seja um, uma minoria ou mesmo a maioria, pode, a partir daí, governar para si mesma, no seu próprio interesse, e é isso que mata a liberdade e dá lugar ao despotismo: uma parte da comunidade política governa os demais no seu exclusivo interesse, e não para o bem comum. Então as várias instâncias de representação da sociedade devem promover o bem comum e distribuir justiça, e para que assim seja precisam estar sujeitas a limites e controles capazes de moderar a tendência de cada um a governar no seu próprio interesse e, até mesmo, conforme à sua própria visão parcial de quais sejam as exigências do bem comum e da justiça.
Mas os conservadores não acreditam que os arranjos institucionais possam garantir uma boa ordem ou assegurar a preservação de um bom regime. É verdade que estimam as instituições tradicionais e os controles e procedimentos institucionais que ordenam e limitam o exercício do poder. Sabem, contudo, que um regime estável e adequadamente ordenado ao bem comum e à justiça depende de um certo estoque de virtude e de um relativo protagonismo daqueles que são os melhores dentre os cidadãos de uma dada sociedade. A virtude, a sabedoria e a prudência são, inclusive, fontes de autoridade ou condição de legitimidade do seu exercício. Ainda assim, insistem os conservadores que nem mesmo aos mais virtuosos deve ser concedido um poder ilimitado. Afinal, não há ninguém dotado de uma virtude assim tão transcendente e, mesmo que houvesse, dificilmente a massa dos cidadãos reconheceria a sua legitimidade para governar. Além disso, mesmo o governo dos melhores, se não for sujeito a limites, tenderá a degenerar em alguma forma de tirania ou oligarquia, ou seja, em um regime desviado em que um ou alguns poucos governam no próprio interesse. Então o melhor é alguma espécie de governo consentido que tenda a conduzir os melhores às magistraturas mas mantenha todas as autoridades, e mesmo a maioria do povo, sob as exigências indisponíveis de uma ordem normativa tradicional que vigora porque encerra o saber prático de gerações e funciona como uma espécie de acervo de experiências que orienta a ação com mais segurança do que teorias e formulações gerais. Daí a preferência dos conservadores por algum tipo de governo misto limitado por princípios testados pelo tempo e corroborados pela experiência.
Por fim, o mais importante. O bem comum é um bem humano e implica, na sua essência, o serviço da pessoa. E a pessoa tem uma dimensão espiritual que estabelece uma relação direta com um absoluto transcendente ao mundo. A sua plena realização só é possível, portanto, nessa relação. O indivíduo que, digamos assim, a pessoa porta, é um pobre indigente cheio de necessidades que, ao entrar em sociedade, vem a integrar algo maior cujo bem é melhor que o bem de cada indivíduo que compõe esse todo. Mas quem entra em sociedade não é apenas o indivíduo. É a pessoa inteira. E embora o bem particular do indivíduo seja inferior ao bem daquele “todo” porque esse “todo” é um “todo” de pessoas, o bem do “todo” só é superior ao bem privado do indivíduo se serve às pessoas individuais e respeita a sua dignidade. Então o bem desse “todo” político-comunitário é um bem materialmente qualificado e delimitado, porque transcende o bem privado dos indivíduos mas adquire conteúdo por referência ao bem das pessoas, e ao bem de cada uma delas se subordina porque a personalidade nos conecta com um “Todo” transcendente que é superior ao “todo” social (Maritain). Essa delimitação do domínio do político por referência a uma realidade que está para além das coisas deste mundo é o mais firme fundamento da liberdade. E dela decorrem tanto direitos quanto responsabilidades que não existem nem em razão do estado nem para o estado e que estão fora da sua esfera de atribuições. Por isso, defendem os conservadores, a pessoa deve ter a sua liberdade preservada e a família, a igreja, a universidade e tantas outras instituições necessárias à nossa realização devem ser protegidas e postas a salvo da intervenção da estatal.
Porto Alegre, 21 de abril de 2020.
* Doutor em Ciências Jurídico-Filosóficas pela Universidade de Coimbra. Mestre em Direito pela UNISINOS. Professor da Escola de Direito da PUCRS. Advogado em Porto Alegre.