Quando se fala em direito fundamental é comum perceber que as pessoas, de um modo geral, entendem que estão diante de uma espécie de prerrogativa absoluta, garantida pela mais elevada norma do país. Não obstante o senso comum reflita, de certa maneira, a força que emana desses direitos, ele não expressa, com exatidão, o real papel desempenhado pelos direitos fundamentais no ordenamento jurídico.
Os direitos fundamentais detêm a conhecida função de resguardar as liberdades e garantias do cidadão perante o Poder Público e, de fato, constituem um poderoso instrumento de limitação do poder estatal, colaborando para que a atuação do Estado busque legitimidade e fidelidade ao pacto democrático. Porém, os direitos fundamentais também estão suscetíveis a restrições pois, não raramente, é possível verificar a ocorrência de conflitos e colisões entre eles, o que determina a necessidade de um regramento peculiar para resguardar a nobre finalidade abrigada no núcleo desses direitos.
É nesse cenário que surge, no direito germânico, a Teoria dos limites dos limites, também conhecida por Teoria das restrições às restrições, cuja finalidade principal consiste em restringir as restrições impostas pelas leis aos direitos fundamentais. Esta classe de direitos, portanto, não pode ser livremente limitada pelo legislador ou por qualquer dos Poderes constituídos, embora seja indiscutível que a efetividade e a convivência harmônica entre os direitos fundamentais dependa da fixação de regras que possibilitem limitações coerentes no âmbito do exercício desses direitos.
A grosso modo, a Teoria dos limites dos limites indica como deve ser uma lei que pretende restringir um direito fundamental, demonstrando quais são os critérios estabelecidos na Constituição para que isso possa ocorrer de forma legítima, preservando a finalidade última que emana do núcleo essencial daquele direito.
O autor português J.J Gomes Canotilho examinou o tema com base no que dispõe a constituição lusitana, estabelecendo um rol objetivo de critérios para a elaboração da lei que pretende restringir um direito fundamental.
Assim, esse controle das leis restritivas de direitos fundamentais, pressupõe, irremediavelmente: a) a edição de lei formal, b) que a limitação prevista na norma infraconstitucional deva estar expressamente ou tacitamente autorizada pela constituição, c) a utilização do princípio da proporcionalidade, a fim de ponderar os interesses envolvidos e verificar se a restrição ao direito é a única e melhor solução para o conflito, d) a preservação do núcleo essencial do direito fundamental, de forma a não esvaziar a finalidade da garantia.
A aplicação desta teoria no direito brasileiro já foi reconhecida e diretamente citada para embasar decisão do STF, conforme consta das transcrições do informativo 377 (ACO 730-RJ), na qual o relator fez a seguinte afirmação: “pretendo deixar claro que não ignoro o fato de estarmos tratando de matéria que para muitos se insere no campo dos direitos fundamentais, cuja proteção a Constituição confia a esta Corte como uma das suas magnas atribuições. Para aqueles que conferem ao sigilo bancário uma fundamentalidade extremada, com a qual eu não concordo, qualquer restrição a esse direito haveria de superar obstáculos rigorosos, entre os quais a exigência de legalidade estrita para o estabelecimento de qualquer tipo de restrição (é a questão dos limites dos limites aos direitos fundamentais).”
Nesta linha de ideias, seria possível entendermos como legítimas as inúmeras restrições ocorridas aos direitos fundamentais no contexto da pandemia de covid-19? Será que os critérios definidos pela Teoria das restrições às restrições foram observados na confecção dos inúmeros atos normativos editados ao redor do Brasil?
Examinando apenas a Lei Federal nº 13.979/20, verificamos que ela estabelece uma série de restrições a alguns dos mais importantes direitos fundamentais, tais como o direito de ir e vir, o direito de reunião para fins lícitos e pacíficos, o direito à propriedade, o direito ao exercício de cultos religiosos e o direito ao exercício do trabalho. Há autorização constitucional para todas essas limitações aos direitos e garantias fundamentais?
A verdade é que as medidas engendradas com o escopo de proteger a vida e saúde das pessoas durante o surto de coronavírus, em sua grande maioria, representam uma intervenção estatal ilegítima do ponto de vista constitucional. Dezenas de leis e decretos foram editados pelo Brasil contendo ações visivelmente limitadoras dos direitos e garantias individuais. Porém, a existência real de um estado de emergência relacionado à saúde pública passou a justificar uma série de providências normativas de índole temerosa, abrigando conotação nitidamente política.
A constituição, como é cediço, prevê sim a possibilidade de restrições aos direitos fundamentais, sobretudo nos casos de institucionalização de um estado de exceção, hipótese em que a limitação a esta classe de direitos encontra descrição minuciosa e expressa no texto constitucional.
A par da inquestionável crise emergencial que o país atravessa, não se verificou a decretação de estado de sítio ou de defesa, mas, ainda assim, foram diversas as restrições impostas aos direitos e garantias individuais e coletivas dos cidadãos. No entanto, a maioria dessas limitações não foi precedida de atos normativos legítimos, capazes de resguardar o núcleo essencial desses direitos, com ponderação adequada dos bens jurídicos e previsão expressa na Constituição, como tão bem nos orienta a Teoria dos Limites dos Limites.
Diante deste contexto, não teria havido no Brasil uma enxurrada de leis, decretos e atos flagrantemente inconstitucionais durante a crise sanitária de 2020, passíveis, sob essa ótica, de declaração de nulidade? Esta questão merece cuidadosa análise, a fim de que os direitos fundamentais, responsáveis pela essência que caracteriza o Estado Democrático de Direito, não passem a sofrer recorrentes ataques dessa natureza e que possam vir a representar a vulnerabilidade desta conquista histórica da humanidade.
*Thaysa Luanna Cunha de Lima Couto da Rocha é advogada, procuradora do município de Belém – PGM-Pa, especialista em Direito Processual Civil – LFG – Instituto Luiz Flávio Gomes.