Assim como vocês, meros cidadãos e contribuintes, não tenho competência para avaliar os impactos macroeconômicos da pandemia e a influência do evento nas bolsas de valores da Ásia. Muito menos teorizar sobre as variáveis do mercado de commodities a médio prazo. Para compensar, mantenho olhos e coração abertos para pequenos fatos que me tocam na condição de vizinho, freguês ou amigo. É sobre um desses que escrevo hoje.
Trata-se do restaurante comida-a-quilo onde almoço às vezes; local situado bem perto de casa, já que sou adepto do home office há anos. Negócio tipicamente familiar, foi aberto pelo pai – que acorda às 4 para compras na Ceasa – e pela filha recém-casada, cuja simpatia e gentileza no caixa são decisivas para o sucesso do modesto empreendimento. Há também o genro, rapagão que pega pesado nos caixotes de legumes, botijões de gás ou pilotando o velho Fiorino de pintura desbotada.
A comida é de primeira qualidade; simples e honesta. Nada extraordinário, apenas um cardápio previsível, mas delicioso. Arroz e feijão bem temperados, frituras sequinhas, saladas arrumadas com carinho nas bandejas; sempre um toque de capricho nas panelas e nas mesas. Na virada do ano fecharam por uma semana e fizeram reforma na pequena loja. Piso trocado; paredes pintadas; compraram talheres melhores e até uma nova logomarca surgiu na fachada. Estavam animados e esperançosos.
As portas agora ficam abertas pela metade. Como os demais restaurantes, improvisaram algumas mesas junto à calçada e fornecem marmitas - poucas, nem há filas. Ontem fui lá; busquei uma para o almoço. O pai – fiador do negócio e signatário dos cheques pré-datados - anda tomando comprimidos para dormir. A moça de sorriso encantador agora exibe comoventes olhos fundos que não combinam com sua jovialidade. Emocionada, contou-me que adiaram o projeto do bebê do casal, sonho planejado para o segundo semestre. As vendas minguadas mal pagam o aluguel. Dispensaram uma cozinheira e dois ajudantes.
- É nossa cota de sacrifício – disse-me a moça, tentando sorrir. Sensibilizado, trouxe a quentinha e deixei lá uma frase de consolo qualquer.
Rotinas dramaticamente alteradas, salários reduzidos, crianças em aulas virtuais, overdose de TV, passeios suspensos até segunda ordem... Improvisando a vida, todo mundo vai dando conta de sua própria cota. Todo mundo, mesmo?
Que nada: existe uma categoria que flutua impassível em remansos de paz, bem longe das ondas tenebrosas do corona. São espécimes que povoam gabinetes oficiais – câmaras municipais, assembleias legislativas, tribunais, congresso nacional. Trabalhando ou não, ociosos nos escritórios ou de bermudas em casa, permanecem serenos e seguros já que recebem religiosamente fortunas pagas com nossos impostos.
O país, o universo em crise? Relaxe: a cada fim de mês, é só conferirem o saldo, livre de qualquer praga ou risco. Não almoçam no comida-a-quilo da esquina; basta solicitarem o delivery sofisticado dos melhores restaurantes da cidade. Um vinhozinho contra o estresse cai bem no jantar; estamos pagando por ele também.
E não é só: além dos salários, benefícios garantidos, lagostas e vinhos, devemos também bancar as campanhas dos habituais moradores do paraíso. A verba vem do fundo eleitoral, a vergonha suprema no desperdício do dinheiro público. Esses milhões fazem falta nas escolas, no saneamento básico, na saúde e em outras mazelas históricas desprezadas na agenda da nação. Em tempos normais, passava batido. Porém, com a pandemia, não podem existir desculpas que justifiquem essa aberração e outros gastos inúteis, como publicidade oficial.
Afinal, onde está a tal cota de sacrifício dos eternos imunes dos vírus de tempos difíceis? Mesmo com uma quentinha boa assim, a gente até perde o apetite na hora do almoço.
*Enviado pelo autor. Publicado originalmente em O Tempo (BH)