Ao zanzar menino nas ruas da cidade com meu pai eu apontava discretamente um chaveirinho na direção de quem considerava pobre ou triste. Era meu talismã, desejando-lhe coisas boas. Como habitou e habitará tantos, a busca da sociedade harmoniosa já me pegava também. Mesmo desconfiando dele, o socialismo me arpoou. Parecia quase tudo evidente: igualdade, oportunidades, justiça, paz e bens a todos. Certo, algumas conexões não se encaixavam, p. ex., a liberdade de agir, se expressar sem ser taxado de pequeno-burguês, as palavras de ordem agressivas propondo paz. Havia também uma suspensão no ar, pois ninguém se atrevia a traduzir em frases claras a magnitude iluminante do que seria um mundo socialista. Ficávamos na concepção genérica do novo mundo. Essas assombrações a gente trancava dum jeito ou de outro nos porões da mente e do coração. Abraçamos a causa com fé. E fé não admite questionamentos. Era um prazer na banguela, despejar noções de um novo mundo sem saber ao certo como ele seria. Me lembro de anos atrás tentar parar o pêndulo dessa ideologia e buscar respostas concretas às minhas dúvidas. Não durou muito a tentativa. Logo chutei tudo pro alto, me agarrando de novo ao prazer do não-pensar. Mas, como tudo mal-acabado, a nódoa crescia.
Uma das primeiras vozes a me fazer virar a cabeça e contemplar outra concepção política foi o então senador Mário Covas, disputando a presidência da república na eleição de 1989. Me aturdiu e me emputeceu no primeiro instante sua fala de o Brasil necessitar de “um choque de capitalismo”. Como assim?! Um cara digno declarando tamanha barbaridade? Fiquei desantenado vários dias. Pingue-pongando a mente depois, meu jeito de analisar as ideias que aterrissam em mim, fui aos poucos descobrindo novas perspectivas e encarando as feridas abertas do socialismo. Travessia difícil. Tantas vezes parei de ler ou nem comecei um artigo expondo as falhas estruturais da esquerda. Mas a curiosidade me atiçava. Voltava, lia o raio do artigo, mesmo espumando de raiva.
Levei anos para desmontar minha esquerdite. E quando ela implodiu tive dores de cabeça, caganeiras, deprês, gripes violentas, sinusites, dermatites. O chão sumiu debaixo dos meus pés várias vezes, dias vazios me vararam. Não foi e nunca será fácil abdicar duma pseudocerteza coalhada de boas intenções. Num Brasilão doente então, cheio de defeitos congênitos e vícios encardidos, tomar a mão duma estrada que aparenta não ter tanta dor e promete o paraíso terrestre hipnotiza. Duramente aprendi: as boas intenções apregoadas pelo socialismo se desmancham no ar por incompreender a economia concreta e propor mudanças estressantes e voláteis ignorando a complexidade humana. E também: o alimento superior do ser humano, a liberdade, tem de se entender com a responsabilidade.Doeu, mas cheguei ao patamar de mente e coração mais leves. Xingar o mundo, o sistema, os sacripantas endinheirados nos torna falsamente críticos. Ricos, médios e pobres sempre existirão, a pobreza sendo relativa em cada sociedade. Ou alguém ainda crê nas cúpulas comunistas renitentes no século 21 vivendo como a plebe? Não é com a penumbra marxista que iluminaremos as falhas da civilização. Aos trancos e barrancos a humanidade evoluiu e a base da esquerda clássica ruiu.
Toda essa travessia custosa que eu e tantos tomaram poderia ser abreviada ou nem necessária se tivéssemos lido ao menos os clássicos liberais. Caras como o genial economista britânico Alfred Marshall (1842-1924). De família pobre,desde os 8 anos de idade tomava diariamente ônibus, barco e caminhava a pé através dos mais degradados bairros fabris e cortiços londrinos situados à beira do rio Tâmisa, pensando em ajudar aquela gente um dia. Marshall contemplou o semblante dos pobres durante toda sua vida.Numa época onde a economia havia chegado ao impasse de achar natural a prosperidade crescer na mesma proporção da pobreza, foi dele a inspiração a reverter essa sina: “O melhor remédio para os salários baixos é uma educação melhor”, proclamou, pois levaria ao aumento da produtividade e consequentemente da renda dos trabalhadores. Ao contrário de Marx, que supôs a competição fazer convergir os salários dos trabalhadores qualificados e sem qualificação ao nível da subsistência, Marshall observou o contrário, pois os trabalhadores especializados já estavam ganhando mais que os não qualificados. Não bastasse esse instante bacana, foi um dos primeiros a apoiar o voto e o estudo feminino, inclusive incentivando sua esposa a cursar faculdade, algo impensável às mulheres daquele tempo e ser favorável à criação dos primeiros sindicatos. 24 anos mais jovem que Marx, de quem foi contemporâneo, Marshall achava o capitalismo a solução, não a fonte do impasse econômico e social, e que este devia ser aprimorado, não demolido.
Acredito que existam no mundo poucas coisas com maior capacidade de conter poesia do que a tabela de multiplicação... Se for possível conseguir capital mental e moral para crescer a alguma taxa anual, não haverá limites para o avanço que se poderá obter; se pudermos lhe proporcionar aquela força vital que tornará aplicável a tabela de multiplicação, isso se tornará uma pequena semente que se transformará numa árvore de tamanho ilimitado (escreveu no livro “Leituras para as mulheres”, de 1873). “O mundo se move, mas o ritmo com que ele se move depende de quanto pensamos por nós mesmos”, disse também na época.
O socialismo e o comunismo deram errado por si próprios. Além de Marshall, seus defeitos congênitos foram estampados por outros dois geniais economistas e filósofos liberais austríacos, Ludwig von Mises (1881-1973), em artigos para jornais já em 1920 e aprofundados no seu livro “Liberalismo”, publicado em 1927, e Friedrich August Hayek (1899-1992), Prêmio Nobel de Economia em 1974, que publicou obras sobre o tema endossando o premeditado fracasso da esquerda radical, concretizado em 1989 com o colapso da União Soviética e leste europeu, e de certo modo da China, que adotou o capitalismo de estado depois das frustradas tentativas de estatização total na era Mao-Tsé-Tung e de sua esposa sucessora.Assim, duramente ou não, é preciso aprender:
. a produtividade despencará sem economia de mercado; sendo este volátil e transformador, não pode ser conduzido por burocratas e padrões rígidos;
. os cidadãos devem ser iguais perante a lei e, dentro do possível, com chances semelhantes de oportunidades, mas a igualdade econômica é uma falácia contraproducente, pois tira das pessoas seu desejo de ascensão material e espiritual, não reconhece a diversidade humana e o mérito, e conduz a sociedade ao empobrecimento;
. prescindir dos empreendedores privados significa desperdiçar energia, progresso e dinamismo econômico e social. É da natureza humana haver pessoas desejosas de tocar o próprio negócio sem ter de seguir ordens. São eles que alavancam a economia, cabendo ao Estado prover justiça a todos e liberdade de mercado para evitar monopólios e protecionismos;
. os gastos da classe rica com luxo têm de ser mirados pela ótica da inovação e do perfeccionismo. Há pouco mais de 20 anos, possuir telefone no Brasil era um luxo: minha mulher chegou a vender um VW fusca paracomprar uma linha telefônica. E no seu início, os celulares eram artigos de ricos, sem contar os banheiros nas casas, carros, computadores, eletrodomésticos, etcéteras;
. detonar o capitalismo, como proposto pelos socialistas e comunistas, além de estressante e antieconômico, rouba das pessoas sua capacidade crítica, pela incapacidade de discernir realmente o que precisa ser aprimorado na sociedade, aniquilando aí a promessa de fraternidade, já que o tal novo mundo viria embasado em destruição do mercado, a mais antiga instituição de relacionamento humana;
. por ser centralizada na raiz e dirigida por partido único, uma sociedade planificada é geneticamente ditatorial, não permitindo o livre fluxo de ideias, desprezando a liberdade individual e a diversidade;
. os arremedos supostamente evolutivos da esquerda clássica, como o estatismo, onde o Estado intervém em menor escala na economia e nas esferas da vida privada dos cidadãos, embora menos deletérios, também agridem a natureza humana e empobrecem material e criativamente a sociedade;
. não existe luta de classes. Qualquer ser humano com um mínimo de respeito ao seu semelhante não aparta as pessoas por sua posição social. Apesar da inveja que atiça alguns, a maioria sabe de suas limitações e que possuir bens materiais depende de trabalho, talento, estudo, determinação... ou sorte, se fulano ganha na loteria ou recebe uma herança. Assim como alguns desejam ser patrões, há muito mais outros ansiando por emprego, pois não querem ou não dão conta da responsabilidade de ter o próprio negócio;
. o historicismo fatalista – teimoso na ideia errada de que a civilização caminha inexoravelmente para o totalitarismo – inexiste de fato, pois não cabe à ciência prever o futuro a longo prazo, mas sim fazer projeções não-taxativas a curto prazo. Quem faz a História são as pessoas, sujeitas portanto a todos graus de decisões racionais ou não;
. relativizar o direito, colocando-o como benesse estatal também enseja sua deformação, por submetê-lo aos humores do estado. O direito individual, pelo qual a humanidade tanto lutou, não pertence a ninguém, a não ser a cada cidadão. Se o estado ferir esses direitos, naturalmente cabe ao indivíduo interpor ação jurídica contra tal desfeita, sem o temor de ser punido por estar supostamente contra a “revolução”, a sociedade ou seja lá o quê;
. a propriedade privada não é apenas o esteio econômico por si sóde uma sociedade aberta. Ela oferece segurança e confiança aos cidadãos, dando-lhes estabilidade diante de uma natureza ao mesmo tempo generosa e cruel;
. a divisão do trabalho, a qual Marx (de novo!) combateu, proporciona especialização, interconexão social, disseminação e variedade de bens e serviços a amplas margens das populações, que anteriormente nem podiam sonhar em obtê-los;
. a felicidade advém de conquista pessoal, desafio de cada ser vivente. O estado pode e deve oferecer condições propícias a isso, tornando a vida em sociedade segura e fluida, fazendo bem o que lhe compete através de serviços públicos dignos e livre mercado. Mais que isso é promessa vã, invasão emocional na psique dos cidadãos.Felicidade é um bem íntimo, impossível de ser replicado por decreto;
. sem economia de mercado não há um sistema de preços funcional, essencial para alcançar uma alocação racional dos bens de capital para usos mais produtivos. O socialismo falha porque a demanda não pode ser conhecida sem preços estabelecidos pelo mercado, ou seja, não há como precificar produtos e serviços;
. a mais-valia, ou seja, o lucro obtido exclusivamente sobre as horas de serviço dos trabalhadores foi outra concepção errada de Marx. Também a gestão eficiente, o aumento da produtividade através de novas rotinas de trabalho e inovações tecnológicas, oportunidade de negócios e demanda por bens e serviços geram lucro. O suor dos trabalhadores tem de ser dividido com todos esses outros vetores.
Por trás do pensamento socialista-comunista há sempre uma essência dadivosa, claro. Só pessimamente direcionada. Não ajudamos os pobres dilatando a pobreza, estendendo-a a quase toda a sociedade (pois a cúpula sempre terá privilégios além do alcance dos mortais). Subtrair a liberdade de ir e vir, de se expressar, de empreender denota pobreza também, ao roubar das pessoas sua capacidade de decidir suas vidas por si próprias. Ainda não experimentamos o real liberalismo no Brasil – livre mercado, poderes verdadeiramente soberanos, prestação de contas do dinheiro dos contribuintes, justiça para todos independente do status social, serviços públicos dignos, empreendedorismo realizável, menos impostos, ambiente de negócios desburocratizado,infra-estruturas dignas, etc. Vivemos num país monopolista, estatista e cartorial desde as capitanias hereditárias, obviamente com algumas ilhas de exceção.Toda essa malévola teia de relações espúrias entre estado e grandes empresários desvendada pela operação Lava-Jato (tirando seu caráter único de crime organizado desenvolvido pelo governo petista e aliados) permeia nossa história nacional. Ficou patente a necessidade de diminuir o tamanho do estado, tornando-o eficiente, responsável financeiramente, respeitável, menos sujeito a corrupção e ao toma-lá-dá-cá político nefasto. A direita, que tanto esperneamos contra, precisa ser compreendida como projeto político-econômico-social viável, produtivo e distributivo de renda, na medida em que faz a economia fluir, gera empregos e facilita o crédito também à população mais pobre.E a esquerda precisa evoluir, entender e aceitar a diversidade de ideias que fecundam a civilização e acatar o livre mercado como suporte de toda sociedade sadia. Essa compreensão pode ser hoje nosso talismã. Sem abrir corações e mentes, deixando o orgulho e a vaidade para trás, não avançaremos discussão nenhuma no Brasil.
E já perdemos tempo demais.
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(*) – Funcionário aposentado da Assembleia Legislativa MG, 60 anos. Trabalhou nos jornais de esquerda “De Fato”, “Em Tempo” e “Movimento” e atuou no Comitê Brasileiro pela Anistia-MG no fim das décadas de 1970 e início de 1980. Contribuinte financeiro do PT na década de 1980 e filiado ao partido e desfiliado anos depois. Funcionário de gabinete do primeiro deputado estadual mineiro do PT de 1983 a 1987.Criador do projeto de arte Zás no Teatro da Assembleia MG. Livros publicados: “Sim” (poemas) e “Olhos jins” (prosa romanceada). Pai de um casal de filhos, recasado com Morena há 27 anos.
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Fontes de consulta:
. “A imaginação econômica”, de Sylvia Nasar, editora Companhia das Letras, 2012. Tradução: Carlos Eugênio Marcondes de Moura.
. “Liberalismo”, de Ludwig von Mises, editora Instituto Ludwig von Mises Brasil, 2010, 2ª edição e-book. Tradução: Haydn Coutinho Pimenta.
. “O caminho da servidão”, de Friedrich August Hayek, editora Instituto Ludwig von Mises Brasil, 2010, 6ª edição e-book. Tradução: Anna Maria Capovilla, José Ítalo Stelle e Liane de Morais Ribeiro.
. “O essencial Von Mises”, de Murray N. Rothbard, editora Instituto von Mises Brasil, 2010, 3ª edição e-book. Tradução: Maria Luiza Borges.
. “Why nations fail – The origins of power, prosperity, and poverty”, de Daron Acemoglu e James A. Robinson,editora Crown Publishers (EUA), 2012, 1ª edição e-book.
. “O retrato”, de Osvaldo Peralva,editora Biblioteca Virtual de Ciências Humanas do Centro Edelstein de Pesquisas Sociais, 2009.
. “Civilização – Ocidente x Oriente”, de Niall Ferguson, Editora Planeta, 2012, 1ª edição e-book. Tradução: Janaína Marcoantonio.
. “Guia politicamente incorreto da história do mundo”, de Leandro Narloch, Editora Tainã Bispo(Direitos reservados à Texto Editores, do grupo Leya), 2013, 1ª edição e-book.
. “Ditadura à brasileira – 1964-1985: A democracia golpeada à esquerda e à direita”, de Marco Antonio Villa, Editora Leya, 2014, 1ª edição e-book.
. “A guide to ‘The poverty of historicism’”, de Rafe Champion, Editora Barnes, Catmur & Friends (Nova Zelândia), 2013, 1ª edição e-book. Guia sobre o livro do filósofo austríaco Karl Popper (1902-1994), publicado em 1957.