Houve tempo em que um muro era o pesadelo.
Tempo de profundo desespero,
Quando o muro refletia um breu maligno em sua face branca,
E ocultava um mundo livre desenhado em cores,
Logo ali... Perto...
Justo na face contraposta.
Houve tempo de impositivo desapego,
Sofrimento expresso na falta da mesa posta,
Indigesto choro da criança que, faminta, crescia alheia ao sossego, tão sonhado na cidade da cicatriz.
Tempo de pesadelo.
Tempo infeliz.
Houve tempo em que o horizonte era o muro.
Muro-templo da canalha doentia.
Muro-mente de arrogância e covardia.
Muro deprimente...
Talhado pela foice da qual me defendia,
Ornado com um martelo macabro desenhado nas mãos de um opressor,
Em um delírio à luz do dia.
O martelo batia...
Sem piedade, socava minha têmpora,
Num esforço demoníaco para convencer-me de que tudo...
Absolutamente tudo...
Era engano meu.
Vã esperança da conquista de minha consciência.
Ela não estava à venda.
Mas ainda assim, o louco era eu.
Nada entendia sobre a "carrasca mais-valia".
Meu corpo gritava,
Não comia.
Meu estômago, doía.
A mim, restava mortificar um lúcido sofrimento,
Na esperança do mundo oculto, por trás daquele muro.
Sofrimento?
Aos olhos do cego, não deveria.
Era indigno, até mesmo, de minha dor.
Um "ingrato".
Filho bastardo da social-patifaria.
Exposto à epilepsia verbal dos vampiros de retina vermelha que, aos berros, lançavam vozes agressivas.
Martelavam minha consciência.
Não paravam! E Insistiam...
- Abraça a utopia!
- A realidade não existe!
- Tua dor não é dor, pois nossa cor é rubra!
- Tua fraqueza se dissipará na promessa de nossa luta.
- A morte se incumbirá de teus valores!
- O mundo acolherá a verborragia!
De fato, se acolhesse, o louco seria eu ao exercitar minha lucidez em terras de malucos.
Era este o tempo em que vivia.
Tempo do muro.
Construído por empilhamento de ossos.
Cadáveres nossos guardados debaixo de um tapete fino e caro,
Comprado com o último pedaço de pão,
Furtado de um irmão,
Em lugar que desconhecia.
Meu pai? O muro tomou.
Minha mãe? O muro extraviou.
Meus filhos....
- Ah... quanta saudade de meus meninos!
- Shhhhh... silêncio!
Não convinha o muro "ouvir",
Senão, os levaria!
Bastava-me rezar...
Um consolo, um amém!
- Que os dias logo passem, para que nasça um novo dia!
O dia em que o "amarelo-esperança" cravado em minha bandeira,
Ofuscaria as cores que o ladeiam: o negro-fúnebre de meu luto, e vermelho-sangue de meu sacrifício!
Esse dia chegaria!
O muro sucumbiria junto aos seus artífices,
Logo, minha alma se encheria...
Provaria da liberdade.
Faria pazes com a alegria.
Ao fim, respiraria a vivacidade sem baionetas apontadas ao peito.
Sentiria em gosto o beijo retido do outro lado do muro.
Reencontraria minha felicidade ao estalo de palmas efusivas,
Risos incontidos,
Lágrimas de alívio.
Meus olhos, então, se abriram...
Era tempo de novo tempo!
Dia de novos dias!
Os ouvidos, atentos, não contiveram a excitação.
Ao som de picaretas livres e badalos dos sinos felizes,
O muro da desgraça ruía.
As promessas se cumpriram.
Os humanos se enxergaram.
Conduziram a grande a festa,
Entoando gritos em pura sinfonia:
- Enfim, o tempo do muro se foi!
- Cessou o tempo do mal!
- Agora, é tempo de verdade!
- Comemorem! Temos liberdade!
- Bem-vindos ao nosso "Natal"!
Conheci, assim, a tão amada cidade,
Emergida de cicatrizes e feridas.
Parida dos sonhos da humanidade, em noite que parecia dia.
Nascia, ali, minha casa.
Minha valente querida...
Enfim, a conhecia!
Nascia a dourada Berlim.
Harley Wanzeller é magistrado. 20.03.2019
(Homenagem ao símbolo de resistência humana representado pela queda do Muro de Berlin, em 09 de Novembro de 1989)