• Valdemar A. Munaro
  • 02/09/2020
  • Compartilhe:

CHAFURDICES


 Três sintomas lancinantes atordoam nosso tempo e nossa sociedade: o ceticismo, o niilismo e o cinismo. Eles indicam o grau da enfermidade física, moral e espiritual que vivemos.

 Do grego, skepsis, o ceticismo designa a suspensão de juízos intelectuais em razão de dúvidas infundadas imiscuídas no processo normal e progressivo do conhecimento humano. O ceticismo se expressa na falta de confiança nos relacionamentos, nas obras que fazemos, nas realidades que vemos e ouvimos. O cético é alguém que desconfia de tudo, distancia-se do que sente e vê; não dá crédito ao testemunho dos sentidos. Ele vê mais o seu próprio pensamento do que as realidades que o cercam e se refugia nele. Não pensa sobre o que vê, mas vê o que está pensando porque confia naquilo que seu pensamento produz. Ao desconfiar das realidades que vê, põe sua fé no próprio pensamento e tira dele, e de nenhum outro lugar, suas conclusões e normas comportamentais. Enfim, confia exclusivamente na própria subjetividade. De quebra, sua difidência se estende às instituições, aos políticos, às igrejas, às universidades, à imprensa, às autoridades, à ciência. Não crê, nem confia em Deus, não crê no amor, muito menos nas palavras dos homens e nos homens das palavras. Reflexo desse ceticismo são os contratos pendurados em cláusulas e mecanismos que tentam evitar fraudes, são os casamentos celebrados sob a égide de muitas testemunhas, são os processos e julgamentos repletos de documentos que buscam evidências e provas visando responsabilizar agentes criminosos. As linguagens corroídas e ambíguas não servem mais ao transporte de verdades. As palavras não bastam, tornaram-se ocas. O ceticismo nos contaminou: desconfiamos de tudo, de todos. Traídos, não confiamos, transformamo-nos em céticos, descrentes e difidentes. Pior é que, a curto ou longo prazo, muito ceticismo arruína a vida. Miguel de Montaigne, David Hume eram céticos. Como eles, os nominalistas, os sofistas, os epicureos, os anarquistas, os filhos e netos das revoluções (Francesa, Russa, Maoísta, Cubana, ‘petista’...), também abandonaram a confiança. Seus frutos estão à mostra: marasmos, indiferenças, extremismos, desesperos...

 O niilismo (do latim, nihil, nada), por sua vez, resvala um degrau da escada cética. Constitui-se num sintoma ainda mais cruel e nefasto na medida em que proclama o nada, o vazio, o sem sentido. Nesse nível, as coisas perdem seu sabor, a vida já não tem sentido, o esforço não tem valor, tudo é relativizado e obscurecido. Poetas, cientistas e escritores niilistas proclamaram o vazio de sentido na existência humana, a ausência de qualquer significado para o que se faz e se projeta. A cosmóloga americana, Katie Mack, no seu recente livro ‘O fim de tudo’ escreveu: ‘é libertador saber como o universo vai acabar’. É uma pessoa que se alegra com as futuras cinzas levando seguidores consigo. Nietzsche já havia levantado a bandeira niilista, não apenas a diagnosticando, mas também a proclamando. A vida humana, a despeito do super-homem, é, para Nietzsche, triste e péssima. Do mesmo modo, Arthur Schopenhaeur (inspirador de Nietzsche), entendeu que a vida se resume a tédio e dor. A lista dos que aderiram ao niilismo são muitos: o escritor argelino, Albert Camus, a ingrata Escola de Frankfurt (que, na sua ânsia por fustigar a todos e a tudo, no século XX, difundiu um niilismo sutil e devastador), os jovens de 1968 (que sorvendo Sartre, Ernst Hemingway, Michel Faucault, J. Derrida, Louis Althusser, Simone de Beauvoir e muitos outros, acostumaram-se ao nada), os desiludidos das revoluções. No frigir dos ovos, milhões de pessoas amalgamaram-se ao vazio e ao sem sentido. Com razão Victor Frankl, sobrevivente de Auchwitz, afirmou que a perda de sentido, constituiu-se, no último século, no pior dos sofrimentos e se perguntava sobre o que poderia ser feito por uma geração tão desesperançada cujas vidas alheias e próprias já não lhes tinha significado. Constatava, tristemente, que 100% dos drogados traziam na alma o estigma niilista.

 Porém, o terceiro e mais degradante nível moral ao qual chegamos é o do cinismo. Sua fisionomia lembra a figura do grego, Diógenes, rebelde andante sem destino e sem causa que usava apenas as mãos para beber ou comer, fazia as necessidades físicas onde bem lhe aprazasse, dormia em barris ou tonéis e ria da própria desgraça e/ou alheia. Diógenes adquiriu fama por sua irreverência quando se encontrou com Alexandre, o Grande: ‘sai da minha frente, pois tu estás me tapando a luz do sol’.

O cínico ri do que é para chorar e chora do que é para rir. Conheci gente que ia a velórios de acidentados ou assassinados a fim de se deleitar com a tristeza e o desespero de seus familiares. O cínico não sente empatia nem compaixão, compraz-se com a dor e o sofrimento alheios. Com efeito, para um homem chegar a ser algoz e assassino, sobretudo de inocentes, necessita formar-se numa escola cínica. O cinismo é irmão da psicopatia. Psicopatas não sentem remorsos, nem culpas, nem escrúpulos. Assassinos são cínicos, cínicos são assassinos em potencial. Todos os revolucionários só chegaram à revolucionariedade pelas vias de uma educação e um treinamento cínicos. O Brasil, infelizmente, tornou-se um ninho de cínicos, dos que se comprazem com a morte e a desgraça dos outros. Roubam em plena calamidade e não sentem remorsos. Os que torcem pela morte, por covid, do nosso presidente são cínicos, como também o são os que apregoam o perdão, sem arrependimentos, para a turma do PT que governou o nosso país.
Designo chafurdices doutrinas que coçam dramas humanos sem deixar de surfar nas ondas do ceticismo, niilismo e cinismo e de cultivar quebradeiras axiológicas. A obra e o trabalho de muitos autores contemporâneos é genuína chafurdice na medida em que põe a colher ou a picareta em tudo sem oferecer janela de abertura e transcendência. É paradoxal no sentido que tais doutrinas zumbem os ouvidos da população com clamores suplicantes de respeito, justiça, solidariedade e direitos, quando elas mesmas semeiam a destruição moral e o vazio de sentido para a vida. As chafurdices antropológicas mexem com a vida sem tocar nas exigências da alma, ignorando os desejos mais profundos da interioridade humana.

Amostragem desse trágico paradoxo pode ser visto nas faces de um feminismo de terceira onda (conforme expressão de Agustín Laje e Nicholás Marquez) e de um ambientalismo global. Com efeito, temos leis e informações, políticas e organismos de conscientização e ação em favor da dignidade e dos direitos das mulheres e defesa do meio ambiente. Contudo, os resultados positivos são pífios e quase invisíveis: a violência contra mulheres recrudesceu, o cuidado pelo meio ambiente espontaneamente não melhorou. Por quê? Porque, atrás dos gritos daqueles movimentos reivindicatórios reina um vácuo demolidor, um desprezo e uma rejeição de valores e virtudes que, paradoxalmente, seriam o próprio fundamento e razão de ser daqueles novos comportamentos. O feminismo referido, quer uma humanidade nova, uma geração de homens ‘nobres e educados’, uma classe de gente que respeite e ame dignamente o ‘feminino’. Ora, então, como e onde encontrar essa nova ‘raça de homens’? Quais úteros os gerarão segundo as prerrogativas qualificadas do feminismo reivindicante? E os defensores honestos e responsáveis do meio ambiente, como formá-los e quem os educará?

É chocante e estranho constatar no interior do próprio feminismo e do próprio ecologismo atuais pressupostos niilistas que tornam ocos seus próprios gritos. As virtudes encarnadas nos valorosos ‘homens novos’ que esperamos só virão de pessoas motivadas e movidas por aqueles princípios que os próprios feministas e ecologistas hoje desprezam, princípios encontrados, por exemplo, na tradição judaico cristã.

Chafurdices é o que essas doutrinas realizam. Em outras palavras: não obteremos jamais uma sociedade mais justa e solidária ‘tão almejada’, se desprezarmos aqueles mesmos princípios sem os quais a justiça, a fraternidade e a solidariedade não poderão acontecer. Todas as revoluções socialistas foram assim: quiseram uma humanidade nova feita por homens velhos, desejaram construir sociedades justas a partir de construtores injustos. Porcos apreciam lama, por isso chafurdam nela. Se tais doutrinas não saírem do lodo em que se edificam e se metem, continuarão cavando a própria sepultura além de só causarem sofrimentos.

Resta ainda, de tudo isso, uma sequela doída e triste muito sentida nos nossos tempos: a da esperança destruída no coração de milhões de humanos. Eles, os prometeicos e profetas da justiça, como Karl Marx e seus descendentes, vieram de muitos lugares, exuberantes, idealistas e sedutores: prometeram-nos um mundo novo e justo para depois nos legar com astúcia, a traição e a mentira sem precedentes. Isso foi o que a turma do PT fez conosco, brasileiros. Mais do que a corrupção, aquela turma nos transmitiu uma herança maldita: a agonia fúnebre de nossa confiança. Assim nos tornamos mais céticos e niilistas. Só faltou sermos cínicos como eles. Essa turma se comportou como se comportam os imorais e cínicos revolucionários que prometem o que não fazem e não fazem o que prometem. Não havendo crime maior do que irrigar esperança na alma de um povo para depois secá-la inteiramente de todo conteúdo e verdade, poderíamos intitular assassinos de esperanças o nome do filme baseado em fatos reais que já assistimos.

Espero não ver essa película duas vezes e, creio, que a maioria dos brasileiros também não.

Santa Maria, 31/08/2020

* Enviado ao blog pelo autor.