(Extraído do site: www.politicaparapoliticos.com.br (uma visita obrigatória para quem se interessa por política)
Publicado em: 16/04/2015
Há 50 anos atrás, segundo estudos de política comparada, havia no mundo 15 democracias consideradas estáveis e 110 democracias instáveis ou formas autoritárias de governo. Passados 50 anos, há 20 democracias estáveis e 147 democracias instáveis e sistemas autoritários. Não visualizo indicadores ou mesmo sinais de que, nos próximos 50 anos, essa realidade venha a ser substancialmente diferente.
m geral trata-se da democracia como se fora uma única e mesma realidade, com significado unívoco. Não é o caso.
Democracia é um termo que possui uma enorme riqueza de significados que atestam a grande importância do ideal democrático e a sua inevitável equivocidade.
Considero que o aspecto mais relevante de uma democracia seja a distinção entre democracia estável e instável. Essa é uma diferença que salta aos olhos quando se observa o mundo real. Democracias estáveis duram, sobrevivem a crises.
Em democracias instáveis tudo está sempre em questão; nada é sagrado para todos; o consenso é mínimo e frágil; a qualquer momento pode ser posto em questão; as pressões por mudanças estão sempre em pauta; a independência e autonomia das instituições estão sempre ameaçadas quando não corrompidas; antiguidade é percebida como defeito e sinal de atraso e a disposição para mudar sempre como sinal de virtude.
São democracias precárias e transitórias, espaços de transição para regimes autoritários, totalitários ou para a cronificação da sua instabilidade.
O argumento factual sobre o número de democracias instáveis ou regimes autoritários (localizados predominantemente no hemisfério sul) é um indicador fortíssimo das dificuldades praticamente insuperáveis de uma evolução da instabilidade para a estabilidade democrática.
Democracias estáveis são raras exceções e a regra em matéria de democracia no mundo real é a instabilidade de suas estruturas.
Um critério simples para identificar democracias estáveis é o grau de persistência de padrão político. Existe persistência de padrão político quando o conjunto de regras constitucionais sobrevive às dificuldades, mudanças e crises, por sucessivas gerações, sem sofrer grandes e abruptas mudanças ou rupturas na sua estrutura institucional.
A democracia inglesa, por exemplo, tem uma linha evolutiva consistente desde 1215 (Magna Carta), tendo sua mudança mais expressiva e sua ruptura mais grave ocorrido na Gloriosa Revolução de 1688.
A constituição americana é ainda basicamente a mesma de 1789, tendo sido capaz de manter até hoje não apenas sua estrutura original como muito do espírito que a originou, não obstante as profundas mudanças por que passou a sociedade americana.
Inversamente, as 20 nações da América Latina, segundo Jacques Lambert, tiveram 195 abruptas e graves mudanças constitucionais no século XIX até meados do século XX. A França, durante o século XIX, viveu sob dois impérios, duas monarquias, duas repúblicas e quatro revoluções. O Brasil de 1930 a 1988 teve 12 mudanças ou rupturas abruptas e radicais, o que equivale a uma mudança institucional a cada cinco anos!
Quais as razões para a magnitude das diferenças entre as nações no aspecto da sua estabilidade? Há 3 razões principais.
Em primeiro lugar, a extrema complexidade do arranjo político que viabiliza uma democracia estável. Elas precisam alcançar elevados escores em legitimidade, eficiência, autenticidade e persistência de padrão e garantir sua continuidade pela institucionalização das suas organizações políticas. Democracias instáveis possuem baixos escores em todas essas dimensões e não logram institucionalizar suas organizações.
Em segundo lugar, a democracia é um sistema político cuja força depende do apoio que a cidadania lhe der. Concebida para garantir a liberdade política, não pode impedir que seus inimigos, os liberticidas, tentem usar as garantias de liberdade para enfraquecê-la e destruí-la.
Ninguém anunciou com maior desfaçatez e cinismo que Goebbels a instrumentalização das liberdades democráticas para destruir a democracia: “Nós entramos no parlamento de modo a nos abastecer no arsenal da democracia com suas próprias armas. Se a democracia é tão imbecil a ponto de nos prover bilhetes ferroviários gratuitos e salários para esse trabalho, isso é assunto dela. Não chegamos como amigos, nem como neutros. Chegamos como inimigos. Como o lobo que irrompe em meio ao rebanho. É assim que chegamos".
O trajeto da destruição da democracia por seus inimigos começa pelo uso da ação direta e da propaganda da democracia direta para desmoralizar e debilitar a democracia representativa e as instituições do estado de direito democrático, subordinando os objetivos gerais da nação aos objetivos dos seus projetos de poder.
Em terceiro lugar, o outro fator que contribui para a criação de democracias instáveis é de natureza intelectual: o enfoque jurídico-formal da política e seus principais instrumentos, a falácia da imitação institucional e a falácia dos poderes da “razão pura”.
A obra-prima de construção institucional pelo exercício da razão pura, célebre por sua reputação de perfeição, foi a Constituição de Weimar (1918). Sua indiscutível qualidade, que a tornou o modelo de todas as Constituições democráticas desde então, não foi, entretanto, suficiente para evitar que a monstruosidade do regime nazista tenha logrado sua ascensão ao poder dentro das formalidades estabelecidas pela Constituição "perfeita".
Nas palavras do próprio Hitler, "a democracia devia ser destruída pelas armas da democracia".
A grande lição que se extraiu da experiência da Constituição de Weimar é que as constituições, e por extensão as leis, não têm o poder de estabelecer ou mudar os comportamentos que colidam com os valores individuais culturalmente consagrados pela organização social. E isso é verdadeiro, acima de tudo, com relação às constituições que são produto da "razão pura".
Nos marcos deste enfoque, uma boa democracia depende apenas de boas leis, a começar pela constituição. Problemas políticos neste enfoque essencialmente são encarados como problemas jurídicos: ou não há regramento sobre a matéria ou o regramento é inadequado.
Em ambos os casos, para os cultores deste enfoque, a falha é jurídica e a solução é jurídica - novo regramento - o que dará origem a novas falhas que vão exigir outras normas e assim sucessivamente, formando um círculo vicioso de produção legislativa infindável e uma verdadeira fábrica de democracias instáveis.
Essa forma de conceber a política dependeu sempre de três procedimentos, tanto nas assembleias constituintes como nas reformas politicas:
(1) Cópia de instituições políticas de outros países (falácia da imitação institucional);
(2) Capacidade inventiva para criar novidades institucionais abstratamente, sem respaldo na experiência prática e histórica do país (falácia dos poderes da “razão pura”);
(3) Desconsideração das características do “terroir” das instituições políticas e do “terroir” para o qual estão sendo transplantadas.
O resultado deste processo invariavelmente é a elaboração de uma cobertura normativa frágil, que adere de forma superficial e sem organicidade ao corpo político e, portanto, facilmente descartável e substituível por outras com as mesmas características básicas.
Para a ciência política, essa concepção jurídico-formal da democracia é manifestamente insatisfatória e irreversivelmente superada. Essa é a lógica da nossa crônica tentativa de fazer reformas políticas e da igualmente crônica pressão por uma nova constituinte no Brasil.
A cada ano, entretanto, a cada eleição, a cada crise nossos governantes e políticos retiram da gaveta o tema da reforma política, que logo adquire a condição de unanimidade, exatamente porque não tem conteúdo definido. Na política, como regra, só há unanimidade em torno daquilo que não tem conteúdo delimitado. Trata-se, pois, de uma unanimidade em torno do vazio.
A luta política, contudo, passada a fase da unanimidade sem conteúdo, revela os verdadeiros interesses dos diferentes projetos de poder em disputa que tendem a ser abortados nas suas pretensões pelo "poder de veto" dos representantes dos demais projetos.
Daí por fim a atração pela estratégia das ações diretas como alternativa para contornar o poder das instituições representativas legais na promoção de projetos de poder populistas e autoritários.
A política brasileira é um campo fértil para comprovar os caminhos equivocados que temos seguido na saga da construção da democracia. Continuamos prisioneiros da instabilidade democrática, insistindo invariavelmente nos mesmos erros e equívocos.
Qualquer análise séria de uma reforma política realista deve começar pelo estudo das razões históricas, sociais e culturais da nossa já crônica instabilidade democrática. Enquanto isso não for feito, 2015 será mais um ano de reforma política, como 2014 e os anos precedentes também o foram.