O Brasil é mesmo o país do “progresso”. A onda progressista da vez é o anteprojeto de atualização da lei de drogas apresentado por uma comissão de “juristas” e “especialistas” ao Congresso Nacional. A pretexto de descriminalizar o uso de drogas e dar um tratamento menos rigoroso para as “mulas” dos traficantes, o anteprojeto, de viés ideológico claramente esquerdista, na verdade visa estimular o consumo de drogas e facilitar a vida de quem vende. Vai ficar bom para os usuários e ótimo para os traficantes.
Os tons vermelhos do anteprojeto já aparecem nas primeiras linhas, quando propõe uma nova linguagem para o tratamento da questão. No primeiro artigo, a lei passa a qualificar o uso de drogas como “problemático” e não mais “indevido”. Claro, “indevido” soa muito proibitivo, e a moda agora não é mais proibir o consumo de drogas, mas apenas tratá-lo como algo problemático, ainda que não se saiba ao certo que diabos isso significa. A lei proposta também passa a definir drogas em associação com o adjetivo “ilícita”, ficando a impressão de que se quer isentar a expressão “droga” do seu caráter eminentemente pejorativo, transferindo essa carga de negatividade para o termo “ilícita”. A ideologia comunista é denunciada novamente pela exclusão sorrateira do rol de princípios da lei a promoção dos valores éticos e culturais do povo brasileiro, porque os autores sabem que esse povo possui uma ética e uma cultura fundadas na tradição judaico-cristã, a qual condena veementemente o uso de drogas. Como o intuito é estimular o consumo de drogas, essa ética e essa cultura só atrapalham, razão pela qual é preciso varrê-las para baixo do tapete. O anteprojeto escancara as más intenções ao propor como um dos objetivos do Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas desenvolver pesquisas para facilitar o uso moderado e não problemático das drogas. É isso mesmo: a ideia é estabelecer uma política pública com o objetivo de facilitar a tomada de decisão das pessoas sobre usar ou não drogas. E mais: propõe-se que o estado ofereça gratuitamente testes laboratoriais para verificação da natureza e quantidade de drogas, seguida de recomendações quanto ao seu uso. Isso significa que o dinheiro dos impostos que você paga servirá para que o governo faça uma espécie de controle de qualidade dos baseados que o maconheiro vai fumar. Só faltou reservar cotas para drogados nas empresas e no serviço público. Parece piada, mas é sério e fica pior.
Enquanto os ministros do Supremo Tribunal Federal discutem timidamente sobre eventual liberação do consumo de maconha, a comissão propõe sem cerimônias a liberação do consumo generalizado de drogas: cocaína, crack, heroína, LSD, ectasy, lança-perfume e qualquer outra droga, inclusive as que ainda não foram inventadas. E não é só o uso. Também querem os homo sapiens da comissão liberar o compartilhamento dessas drogas. Assim, aquele jovem traficante que estuda com o seu filho ficará autorizado a levar balinhas de ecstasy, LSD ou lança-perfume para compartilhar com a turma na balada ou no churrasquinho do final de semana. Tem mais. A comissão propõe que consumir drogas dentro de escolas, creches, hospitais, em eventos esportivos e culturais ou mesmo na rua seja uma mera infração administrativa, sujeita apenas ao perdimento da droga e multa. Com esse tratamento tão benevolente, na prática, você será constrangido a conviver com gente cheirando pó na pracinha, enquanto o seu filho pequeno brinca no balanço.
Não bastasse estimular o consumo, o anteprojeto também é generoso com os traficantes, reduzindo as penas para o crime de tráfico. De acordo com a proposta, vender drogas continua com penas de cinco a quinze anos (regime inicial de cumprimento é o semi-aberto). Já guardar ou ter em depósito substância entorpecente seria punido com pena mínima de apenas três anos, o que significa regime inicial de cumprimento aberto. A alteração não é a toa. Os doutos da comissão sabem que é raro flagrar o traficante vendendo a droga. Em regra, os flagrantes ocorrem com a apreensão das drogas guardadas ou depositadas na residência do suspeito ou nas suas adjacências. Eis o pulo do gato: se o sujeito for flagrado vendendo um grama de maconha, o que quase nunca acontece, ganha cinco anos de cana; mas se for flagrado guardando cem quilos de cocaína no quintal da sua casa, sua punição será assinar presença no fórum uma vez por mês e olhe lá. Com base na minha experiência profissional, posso assegurar que, se o projeto de lei fosse aprovado, a maioria dos traficantes presos hoje seriam postos imediatamente em liberdade, porque foram denunciados por guardar drogas e não por vendê-las. Tem mais ainda: o anteprojeto estabelece que se presume para uso ou consumo pessoal a aquisição, a guarda, o depósito, o transporte ou o porte de até 10 (dez) doses de drogas. De novo, até os macacos da Amazônia sabem que uma das artimanhas dos traficantes é circular com pouca quantidade de drogas no bolso, justamente para parecerem usuários e não traficantes. Portanto, o que os integrantes da comissão estão propondo é blindar a malandragem dos traficantes com uma presunção legal.
Poder-se-ia escrever um tratado sobre outras tantas barbaridades propostas no anteprojeto, como transformar os crimes autônomos de associação e organização criminosa em meras causas de aumento de pena do tráfico ou permitir a concessão de graça, indulto e anistia para alguns traficantes, mas os exemplos citados são suficientes para evidenciar que a política de drogas proposta é paradoxal, porque, ao mesmo tempo em que mantém a repressão ao tráfico, ainda que suavizada, legaliza o consumo de todas as drogas. Ora, vender e comprar são faces da mesma moeda. Reprimir a venda de drogas e estimular o consumo é como combater o corruptor e incentivar o corrupto. As pessoas precisam parar de enxergar o usuário de drogas como um indivíduo “problemático”, uma vítima sabe-se lá do que. O usuário é a fonte primordial de todas as receitas do narcotráfico, logo é o dinheiro do usuário que sustenta o traficante e financia o terror necessário para manter esse negócio bilionário. Sem o usuário não existe o traficante. Simples assim! Então, das duas uma: ou se libera um e outro, o consumo e o comércio, ou se combate um e outro. Incentivar um e coibir o outro é enxugar gelo.
A política atual de repressão ao tráfico está longe do ideal e é preciso uma correção de rumos. Mas não será estimulando o consumo de drogas e aliviando as penas para os traficantes que se alcançará um resultado melhor do que esse que está aí. A tendência é tornar o negócio criminoso mais lucrativo e menos arriscado. Se usuários, traficantes e "progressistas" têm motivos para celebrar a proposta, é melhor a sociedade ficar alerta, porque boa coisa não pode ser.
* O autor é Promotor de Justiça no MP/SC
** Publicado originalmente em https://leandrogovinda.blogspot.com/2019/02/bom-para-o-usuario-otimo-para-o.html?m=1