1. Um discreto sacerdote jesuíta
Estamos em meados do século XVII. Por uma entrada lateral do salão, esgueira-se a figura negra de um sacerdote jesuíta. Magro, de caminhar lento e pausado, rosto atento, olhos penetrantes, um meio sorriso na boca. Atencioso, a todos cumprimenta de forma discreta, ora retendo-se por alguns segundos numa saudação, ora acenando levemente com a cabeça.
As pessoas comentam entre si ao vê-lo passar, e uma palavra transmitida como se fosse uma senha revela sua identidade: Frei Baltasar Gracián. Comenta-se à boca pequena que se encontra em sérias dificuldades com seus superiores, por sua insistência em publicar obras com pseudônimos, ou sem a necessária autorização da hierarquia eclesiástica.
Conclui sua promenade ao chegar ao fundo do salão, unindo-se ao seleto grupo cortesão que cerca o nobre proprietário do palácio e patrocinador da festa.
2. A vida na corte
Villa de Belmonte de Catalayud, Zaragoza 1601. Nasce Baltasar Gracián y Morales. Sua vida se estende desde o início do século (1601) até seus meados (1658). Gracián escreve em pleno século XVII – Século das Luzes –, época da afirmação da monarquia absoluta por direito divino, auge da vida cortesã na França, época de Louis XIV e Versalhes.
Nesse período, a vida que valia a pena ser vivida era a da corte, em torno do rei. A corte era então o centro da nação. Lá se encontravam, sob a presença cerimonial do monarca, a nobreza, a alta burguesia educada, a mais alta hierarquia da Igreja, os artistas de todo gênero, os sábios e intelectuais.
Essa era a sociedade que contava, que dava o tom, que legislava sobre estilo, maneirismos, bom gosto, maneira de falar, moda, sucesso e insucesso. Ou se tinha o “ar da corte” ou se era insignificante, irrelevante e até ridículo.
Lá se encontram também os arrivistas, os talentosos sem dinheiro, os nobres empobrecidos, os sacerdotes fascinados pelo mundo civil, os ambiciosos de poder e prestígio.
É na corte que seu sucesso podia ser conquistado. Um patrocínio, um mecenato, uma recomendação, associações vantajosas ou um casamento proveitoso podiam fazer a diferença entre subir ou não na escala social.
Na corte francesa, por exemplo – a mais brilhante de todas –, circulavam luminares como o burguês Colbert, o Cardeal Richelieu, Cardeal Mazzarin, as madames que patrocinavam seus famoso salões, literatos como Molière, Racine, Boileau, músicos e mestres do ballet, como Charpentier e Lluly, arquitetos como Mansart, Perrault, pintores como Lebrun, paisagistas como Le Nôtre, militares como Turenne e Condé, para citar alguns dos mais famosos.
A vida cortesã era uma limitada, mas operativa câmara de compensação social. Foi o espaço privilegiado onde os filhos da burguesia, educados em universidades, disciplinados, talentosos e exímios praticantes da arte de comportar-se com elegância em sociedade tornavam-se conhecidos, estimados e aceitos por aqueles que podiam se dar ao luxo de patrocinar suas carreiras.
Vencer na vida em grande estilo significava, antes de tudo, vencer na corte. Para tal era indispensável aprender a sobreviver às intrigas, aos ciúmes, às traições, aos caprichos; saber esperar sua hora; aproximar-se das pessoas certas; administrar sua aparência; saber quando falar e o que falar; conter suas paixões e sentimentos; ser cauteloso sempre, e ousado quando a oportunidade se oferecesse, e saber distinguir os dois momentos; esconder seus defeitos e limitações e exibir, com sobriedade e oportunidade, seus talentos e qualificações; em suma, perseguir um modelo de cortesão perfeito, dele não se afastando até que a hora certa se apresentasse e a oportunidade se oferecesse para o “salto” rumo às posições mais elevadas – e mais estáveis – de prestígio e poder.
Foi nessa época, e para essas pessoas, que Gracián escreveu seu “Oráculo”. É para essa corte e seus personagens, sobretudo os que buscavam a ascensão social, que Gracián o escreve. Dela sairão os líderes da nação, mas precisarão antes vencer e se afirmar, dentro das suas regras. Gracián os municia com lições definitivas para vencer na corte, assim como Maquiavel, um século e meio antes, municiava os nobres italianos na arte de governar as cidades-estado italianas.
Maquiavel não podia falar para a corte porque corte com esse poder ainda não existia. Gracián não podia falar para os condottieri, porque seu tempo tinha passado e tinham sido substituídos pelos nobres subordinados a monarcas absolutos, centralizadores e hereditários.
Gracián parecerá menos audaz e radical que Maquiavel, porque escreve noutra época e dentro de um tipo de institucionalidade em que a monarquia havia logrado subordinar a nobreza, cooptando-a com os prazeres da corte.
No essencial, reconhecida a diferença de épocas e de público-alvo, seu foco, como o de Maquiavel, é o poder: como conquistá-lo e mantê-lo.
3. O oráculo
A obra pela qual Gracián é mais conhecido é o “Oráculo”, ou a “Arte da Sabedoria Mundana”. Essa obra reúne 300 aforismos sucintamente comentados, que são propostos como orientações para o sucesso na vida social e política. A temática desses aforismos não é muito distante das questões suscitadas pelo marketing político dos tempos atuais, como “ser ou parecer”; como a identificação do sucesso com o poder; como a subordinação da ética à estratégia; como sua implícita descrença na natural bondade do ser humano – e, para um sacerdote, o inusitado da absoluta ausência da referência a Deus e à doutrina cristã nos comentários.
Gracián captura a condição humana na vida como ela é, não na vida como gostaríamos que fosse. Para sair-se bem na vida real, ele exalta a prudência, o autocontrole, o realismo que expurga a ilusão, a esperança e a imaginação, a sabedoria que permite entender as pessoas, interpretar suas intenções e encontrar a estratégia para orientar o comportamento.
A seguir, alguns exemplos desses aforismos com comentários do próprio Gracián reduzidos ao seu essencial:
1. “Quando a paixão toma conta do pensamento, a razão vai para o exílio.”
Não permita então que sua imaginação se atrele às suas paixões. A imaginação comandada pela paixão salta à frente da realidade e torna as coisas mais sérias, ameaçadoras e graves do que realmente são. Ela imagina não apenas o que existe, mas também o que pode vir a existir, passando logo para o estágio de considerá-lo já em existência.
2. “O silêncio não comete erros. Só se fala para melhorar o silêncio.”
O sábio somente rompe o silêncio se for para melhorá-lo, isto é, acrescentar por suas palavras conhecimento, ilustração e sabedoria.
3. “A verdade é geralmente vista, mas raramente ouvida.”
As palavras são as sombras dos atos. Os atos são a substância da vida, e palavras sábias, o seu adorno.
4. “Cerque-se de auxiliares inteligentes.”
A felicidade dos poderosos resulta de se fazer acompanhar por auxiliares inteligentes, que os resgatem das dificuldades em que caíram por ignorância. A forma mais sublime e superior de autoridade é fazer pela arte, servos daqueles que, por natureza, são superiores. Há muito por saber, pouco para viver, e não se vive se não se sabe. Escolha um assunto e deixe os que o cercam servirem-lhe o melhor de suas inteligências. Se não pode fazer do conhecimento seu escravo, torne-se amigo dele.
5. “Varie sempre a maneira de fazer as coisas.”
Para manter a atenção e o interesse sobre você, não aja sempre da mesma forma. Varie sua forma de agir e você confundirá as pessoas, especialmente seus rivais. É fácil matar uma ave que voa sempre em linha reta, mas é difícil acertá-la se ela voar mudando seu curso. O verdadeiro jogador nunca move a peça que seu adversário imagina que vai mover, menos ainda aquela que ele deseja que você mova.
* *PROFESSOR DE CIÊNCIA POLÍTICA, PÓS-GRADUADO PELA UNIVERSIDADE PRINCETON, EX-REITOR DA UFRGS, É CRIADOR E DIRETOR DO SITE WWW.MUNDODAPOLITICA.COM
**Publicado originalmente em 11 de setembro de 2013