• Adolpho Crippa
  • 27/06/2019
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BALANÇO DA CONSTITUINTE


Em 1985, a revista Convivium dedicou um número especial (nº 4 – 1985) aos problemas constitucionais, com estudos de diversos autores. Promulgada a Constituição, esses e outros pensadores analisam diversas questões que se põem a partir do texto da nova Carta. Há uma constatação inicial desconcertante. Promulgada a nova Constituição, longe de se ter tornado o instrumento de democratização e da modernização do país, tornou-se descartável. O Brasil não cabe dentro dos limites que lhe impuseram. Para poder viver e trabalhar o país se vê obrigado a ignorar seu principal instrumento jurídico. Ao que parece, a Constituição de 1988 foi um grande equívoco político.

O equívoco político tem diversas faces. O mais grave foi o de ignorar o país real para o qual estava sendo redigida. Somos um país que nunca levou muito a sério suas Constituições, muito mais em razão do irrealismo e inadequação das determinações constitucionais do que por obra de alguma disposição anticonstitucional ou propensão à ilegalidade. Mais que as anteriores, a Constituição de 1988 surgiu anacrônica e obsoleta. O conluio de interesses regionais, locais e individuais com ideologias ultrapassadas deu origem a um texto jurídico inviável e inútil. Muitos procuram amenizar o equívoco constitucional invocando as "coisas boas" que aparecem no novo texto. Na verdade, não se trata de saber se há ou não "coisas boas", avanços sociais, promessas de paz e de bem-estar. Trata-se da Constituição como um todo. Como tal, nasceu anacrônica e obsoleta, além de confusa, contraditória e, de fato, inviável.

A Constituição de 1988, com efeito, se levada a sério, obriga o país a permanecer dentro dos limites da pobreza no contexto de um mundo que avança para uma situação de riqueza e impensável bem-estar. Aceitou-se como fato fundamental que o país deve permanecer no âmbito de Terceiro Mundo – pobreza -, porque muitos outros são parte do Primeiro Mundo – riqueza. Para salvar a dialética e a ideologia é indispensável que os ricos explorem os pobres ou que os países do Terceiro Mundo – as novas colônias – garantam o bem-estar dos países ricos – as novas metrópoles.

O mundo de hoje vive uma época de prosperidade. O progresso no conhecimento científico e nas realizações tecnológicas determina uma alteração completa nas relações internacionais. Os "blocos econômicos" surgem não em obediência a teorias ou ideologias de cunho nacionalista ou de teor dialético, visando a algum futuro milênio paradisíaco, mas em razão das regras impostas pela realidade política e econômica do mundo. Somente para o Brasil, o que parecia impossível alguns anos atrás continuará impossível. Perguntaram-se muitos: como o Brasil, com seus recursos naturais e com inteligência de seus habitantes, consegue ser pobre? Seria tão difícil deixar de pensar no poder e na ganância dos outros e começar a pensar no que somos e no que podemos ser nas próximas décadas? A nossa crise cultural não vive dos detritos da transição política nem dos juros da dívida externa. A nossa crise alimenta-se em teses obsoletas e ultrapassadas e sobrevive pela ausência de ideais nacionais capazes de empolgar de maneira suficiente as vontades. Somos obsoletos e fazemos questão de permanecer assim. Permanecemos positivistas quando o mundo havia esquecido o prolixo e confuso escritor A. Comte. Buscamos ainda soluções marxistas quando o mundo inteiro abandonou a doutrina pré-industrial e pré-capitalista do escritor e revolucionário alemão K. Marx. Somos obsoletos.

Alguns de nossos dirigentes, que se julgam a consciência viva na nação, aceitam e impõem como modelo político e como receita econômica uma inqualificável mistura de nacionalismo e socialismo que jamais suscitou progresso e bem-estar em lugar algum do mundo. É difícil imaginar porque os derradeiros defensores dos erros do século XX – o nacionalismo e o socialismo – devessem sobreviver no Brasil. Mantivemos a reserva de mercado na era dos mercados integrados, preservamos nossos minerais na era da criação de novos materiais, defendemos uma quase inexistente tecnologia própria num mundo sem fronteiras! Parece óbvio que no mundo contemporâneo o sindicalismo dos "empregados" está sendo rapidamente ultrapassado pela automatização. Os operários sindicalizados serão rapidamente ultrapassados pelos "acionistas", como convém a um capitalismo moderno e popular. Na era da eletrônica, da informática, da biogenética e das intercomunicações, as relações sociais e econômicas entre os povos serão alteradas. Não haverá "trabalhadores explorados" nem patrões "exploradores". Haverá ciência, pesquisa, tecnologia e riqueza, independentemente de reclamos nacionalistas.

O fato histórico está aí a desafiar a perspicácia dos historiadores, analistas políticos e sociais. O país vive à margem da nova Constituição recém-promulgada. Nada menos que 330 preceitos constitucionais estão no aguardo de leis ordinárias ou complementares. O país continua vivendo, trabalhando e progredindo, com um governo sem orçamento, com o Congresso sem comissões, à mercê de medidas provisórias mensais, sem legislação eleitoral, sem um sistema tributário, sem uma adequada regulamentação do direito de greve e de diversos outros direitos. Conseguimos "preservar" as instituições com um Congresso parlamentarista e um Executivo presidencialista. Conseguimos sustentar uma burocracia inútil e ineficiente. Conseguimos pagar as contas das empresas estatais desnecessárias. Conseguimos sustentar com alegria as mais inacreditáveis falcatruas, garantindo privilégios inaceitáveis e negociatas inqualificáveis. Tudo em nome da República, do bem-estar do povo e da preservação das instituições democráticas!

A Constituição terceiro-mundista e socialista de que fala M. Reale, diretiva e detalhista (M. G. Ferreira Filho), anacrônica (P. Mercadante), assimétrica, normativa, redundante e casuística (N. Saldanha), estatizante (A. Paim) nasceu com data marcada para morrer. Infelizmente, teremos que começar a preparar uma nova Constituição antes mesmo de a atual ter sido lida e regulamentada. Os problemas suscitados pelo ministro do Supremo tribunal Federal José Carlos Moreira Alves, pelos professores R. Poletti, O.S. Ferreira. R.Lobo e Ives G. da Silva Martins oferecem a medida da gravidade dos problemas postos pelo novo texto constitucional. Com estes estudos, a Revista Convívium continua participando da análise e do debate dos problemas nacionais.

*O autor, Adolpho Crippa, licenciado em Filosofia, foi autor de vários livros, entre os quais Mito e Cultura, A universidade, A ideia de cultura em Vicente Ferreira, e diretor de Convivium Revista de Investigação e Cultura. Faleceu no ano 2000.
** Publicado originalmente em Convivium Revista Bimestral de Investigação e Cultura uma publicação da Editora Convívio, Novembro/Dezembro – 1988 ano XXVII – Vol 31 – Nº 6 Página 493 a 495