• Fernando Fabbrini
  • 27/12/2019
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AQUELE NATAL

 

“A cada dia fico mais seguro de que o verdadeiro espírito de Natal é rebelde, imprevisível, desconcertante.”
26/12/19 

 

Amigos me confessam que sentem tremores, vertigens e suores aos primeiros acordes de “Jingle Bells” ou à visão de um sorridente Papai Noel temporão, já em novembro. Para muita gente, o final do ano marca a chegada da temida estação da ansiedade, das palpitações, das tristezas e dos humores oscilantes.

O mais estranho desse tempo é que ele conduz os incautos a um território imaginário de picos nevados e pinheiros românticos, onde cada um deve estar obrigatoriamente feliz e saltitante como uma rena ao primeiro tilintar dos sininhos. Que crueldade! Ora: quantas pessoas chegam ao final do ano com a alma leve, os afetos em dia e as mágoas sanadas? Infelizmente, nossos altos e baixos não estão sujeitos ao calendário gregoriano e pode acontecer, sim, de nossa voz desafinada soar atravessada em meio à harmonia do coral festivo. A realidade, a vida como ela é, contrasta com a ilusão desses dezembros, tromba de frente com a leviandade cosmética dos comerciais dos shoppings, se engasga com a farofa e o panetone obrigatórios.

Estamos ali reunidos, cercados de familiares, amigos, vinhos, pernis fatiados, crianças, luzinhas que piscam e mulheres de roupa nova. Mas... cadê a felicidade total? Ué? Não apareceu? Nós pagamos por ela, à vista e em três vezes no cartão! Ela existia, sim, nos comerciais da TV, no sorriso dos casais, nos abraços e nos beijos das propagandas de perfumes! Por que será que a felicidade total não saltou para nós precisamente à meia-noite, ereta e pontual como o termômetro do peru no forno?

Quantas bobagens! A cada dia fico mais seguro de que o verdadeiro espírito de Natal é rebelde, imprevisível, desconcertante. E que ele caminha ao lado do grande sentimento de fraternidade, uma entidade de aparições raras e inesquecíveis. Já passei por isso, de pura sorte.

Estávamos visitando uma catedral famosa pelos seus vitrais. Havia uma missa naquele momento, e a igreja estava repleta de fiéis e de turistas. Foi quando o padre convidou as pessoas a se darem as mãos para rezarem o pai-nosso. Obedecendo ao ritual, um pouco sem-graça pela intimidade súbita e forçada, nós, ovelhas desgarradas e pecadoras, seguramos as mãos vizinhas desconhecidas e começamos a rezar também.

Então, a magia aconteceu. O pai-nosso que ouvíamos não era balbuciado apenas no português-brasileiro, mas também em italiano, alemão, francês, chinês, espanhol – e tantas outras línguas que não consegui identificar. Estávamos ali, turistas vindos de toda parte, ignorantes como os pastores que seguiram a estrela, reunidos pelo acaso para rezar. Rezar, refletir e agradecer pelo pão diário, santificar a natureza, pedir perdão pelo nosso egoísmo eventual e, sobretudo, perdoar-nos e perdoar aqueles seres idênticos a nós, habitantes de um planeta azul errante.

Aposto que não fui o único a sentir o nó na goela ao ouvir nossas vozes ressoando nos mármores da igreja – um cântico confuso, descompassado e dissonante; porém, com o poder de fazer-nos flutuar. Era a voz da humanidade. Quando terminou a oração, soltamos as mãos alheias, sorrimos para nós mesmos e saímos cada qual para seu destino, fingindo que olhávamos interessados os detalhes renascentistas dos vitrais multicoloridos.

Lá fora não havia neve, renas, gnomos ou algum trenó estacionado. Um ônibus de turismo buzinava frenético, apressando os japoneses faltantes. A única música vinha de uma loja na praça em frente, tocando um reggae animadíssimo. E o sol estava bem quente para aquele dia da primavera europeia. Mas pensei comigo: isso era ou não era Natal?